Aumento de moradores de rua em SP agrava disputa sob pontes e viadutos

População sem-teto busca estruturas para se proteger da chuva e de violências; pandemia empurrou milhares de pessoas para fora de casa

25 out 2021 - 15h40

Cinco meses atrás, o cozinheiro Hélio Felix, de 55 anos, abandonou Torres (RS) após perder o emprego em um hotel. Ele se mudou para São Paulo na tentativa de se reerguer. Enquanto não consegue, mora sob o Minhocão, no centro. Sem jeito, ele conta que chegou a ficar cinco dias sem tomar banho. Agora, o desempregado ganhou uma barraca de uma ONG, mas anda com as poucas roupas que restaram na mochila preta, puída.

O aumento da população em situação de rua em São Paulo, alavancado pela crise econômica e a pandemia, acirrou a disputa debaixo de pontes e viadutos, menos expostos à chuva e às violências. Calçadas, parques e avenidas representam risco maior, além da total falta de privacidade.

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"É uma situação que nunca pensei que ia passar. A gente não dorme direito por causa do barulho dos carros e do medo de acontecer alguma coisa. Às vezes tem briga, tem roubo. É bem difícil", conta o gaúcho, que chegou com apenas R$ 170 no bolso, dinheiro usado para comer.

"Não tenho vícios, não fumo e não bebo. Meu sonho é encontrar um emprego. Estou esperando a resposta de um supermercado", acrescenta Felix, viúvo, que também está em busca de uma nova companheira.

Em 2015, a cidade tinha 16 mil pessoas vivendo nas ruas. No último censo, de 2019, o número subiu para 24.344. A Prefeitura ainda prepara novo levantamento, que deve ser concluído no 2º semestre, mas especialistas e entidades afirmam que o problema se agravou com a crise sanitária. O Movimento Estadual das Pessoas em Situação de Rua estima alta de 50% nos últimos três anos, com mais de 50 mil de pessoas sem casa.

"Os viadutos são menos expostos à violência e, por isso, são mais cobiçados", diz Robson Mendonça, presidente do Movimento das Pessoas em Situação de Rua. A Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras contabiliza 273 pontes, viadutos e pontilhões.

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Maria Gonçalves, de 50 anos, e o irmão José Jorge, de 44, também perderam o endereço na pandemia. Após serem demitidos de uma fábrica de tecidos no ano passado, não conseguiram pagar mais o aluguel, de R$ 500, no Brás. Eles e a mãe - Maria Helena, de 78 anos - se mudaram para o Viaduto Antônio de Paiva Monteiro, na zona leste.

O lugar também é conhecido como ponte das pedras - foi lá que o padre Julio Lancellotti quebrou a marretadas blocos de paralelepípedos instalados pela Prefeitura na parte inferior do viaduto no início do ano. Alvo de críticas por afastarem os moradores de rua, os paralelepípedos foram retirados. Hoje, dezenas de barracos estão ali.

"A gente só conseguiu esse barraco depois de esperar um pouco, quase um mês. Tinha gente querendo também. Como já tinha conhecidos aqui, eles seguraram para nós", conta Maria, sobre a estrutura de madeira. "Assim que a gente arrumar um emprego, a gente vai para um lugar melhor. Ainda não deu", planeja.

No cômodo, ela guarda vários aparelhos de micro-ondas - todos sem funcionar. Foi essa a saída que ela encontrou para proteger as doações de comida dos ratos e baratas. Ali dentro, a comida dura um pouco mais e fica limpa, segundo ela. Hoje, a única renda da família é a separação de aparas de tecido por cores para outra fábrica. Eles ganham R$ 0,25 por quilo de tecido e R$ 200 reais por quinzena, calcula Maria.

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Em outro barraco sob o mesmo viaduto, vive Rodrigo Evaristo Soares, de 36 anos. Todo dia, ele leva os três filhos para as ruas. Depois que a mulher se tornou usuária de drogas, o casal se separou. "Não posso deixar meus filhos sozinhos e não tenho ninguém para cuidar deles", diz o trabalhador da área da reciclagem.

Famílias com crianças, gente que foi empurrada para as ruas pelo desemprego, evitam dividir espaços com dependentes químicos e descobrem as regras de convivência entre os sem-teto. "Não permitem o uso de drogas por perto. Há regras entre os grupos e elas são cumpridas", afirma André Soler, fundador e presidente da SP Invisível.

Na zona norte, nas proximidades do Terminal Rodoviário do Tietê, o espaço debaixo do Viaduto Fabio Lazzari, que permite o acesso ao centro para quem vem pela Marginal do Tietê, é o lugar mais procurado pelos moradores de rua. Nos últimos anos, a região passou a concentrar as pessoas que deixaram a Cracolândia e outras ruas do centro após constantes intervenções policiais ou de fiscais, das remoções ou recolhimento de pertences.

Bruna Santos, de 40 anos, ainda não conseguiu uma vaga sob o viaduto. A concorrência está grande. Por enquanto, ela arma sua barraca de camping - fruto de uma doação de uma ONG - no gramado ao lado da ponte Cruzeiro do Sul. "Todo mundo precisa de abrigo, mas famílias com criança precisam mais", diz a ex-auxiliar de limpeza que perdeu o emprego em Catanduva, no interior, e se mudou atrás de emprego. Ela confessa ser dependente química.

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Para não perder seu lugar embaixo do Viaduto Bresser, na esquina com a Avenida Alcântara Machado (Radial Leste), o desempregado Mateus Junior, de 21 anos, fez um grupo com seu próprio irmão, Renan, além de dois amigos. Moram juntos há quatro anos. Quando um sai, o outro fica. O lugar nunca está abandonado. Eles saem, por exemplo, para comer no Núcleo de Convivência San Martinho, duas quadras dali. A fila é enorme, mas o almoço é de graça, oferecido pela Prefeitura de São Paulo. Os banhos - uma ou duas vezes por semana - são feitos na sede da escola de samba Mocidade Unidos da Mooca, ali perto.

Quando ganham arroz ou feijão, usam restos de pallets para fazer uma fogueira na calçada. Tudo ali é doação: colchões, panelas velhas e roupas. Mateus tem duas camisetas. Para falar com o Estadão, ofereceu uma poltrona em que o pó preto do asfalto encobriu as flores coloridas. Embora o cantinho deles esteja com aquela fuligem do asfalto, quase tudo fica escuro, o local foi varrido faz pouco tempo. Não tem mau cheiro. Ele agradece a atenção. "Todo mundo vira a cara, mas aqui é nossa casa", diz o jovem, que morava em Itaquera, zona leste, mas brigou com a família e diz ser dependente químico.

Prefeitura destaca oferta de abrigo e alimento à população vulnerável

A Prefeitura de São Paulo informa que mantém serviços de acolhimento, abrigo com alimentação e higiene básica, núcleos de apoio que também oferecem alimentação e higiene básica para a população em situação de rua. Segundo a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, foram criadas 2.393 vagas. A pasta informa ainda que ampliou a oferta de serviços nos quais as pessoas em situação de rua têm acesso a refeições, banheiros, kits de higiene e orientações.

A Secretaria de Habitação afirma oferecer auxílio aluguel para 22 mil famílias, benefício para famílias em situação vulnerável. A pasta informa ainda que mais de 31 mil unidades habitacionais já foram entregues à população paulistana desde 2017 a partir de parcerias com os governos estadual e federal e iniciativa privada. Desde janeiro deste ano, foram cerca de 2 mil unidades entregues.

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Negócios montados debaixo de pontes sofrem com queda de movimento e pandemia

Debaixo da ponte também é lugar para tentar ganhar a vida. Há 11 anos, os irmãos Luciano Gomes da Silva, de 32 anos, e Aguinaldo, de 29, comandam uma borracharia embaixo da Ponte dos Remédios, zona oeste de São Paulo. Depois do isolamento social, que os dois calculam ter motivado uma queda de 70% no movimento na Marginal Tietê, o negócio tenta se recuperar. Em condições normais, Luciano conta que consegue sustentar a família - mulher e duas filhas - e ainda mandar uma ajuda para sua mãe, Maria Aparecida, na cidade de Delmiro Gouveia (AL).

Depois de ganharem a carroceria de uma Kombi para guardar as ferramentas, os irmãos foram ampliando a estrutura. Hoje, o veículo é uma mistura de oficina - o compressor fica lá dentro - e local de descanso, com colchão e televisão. Em dois cômodos do lado de fora, que aproveitam a estrutura do próprio viaduto, os empreendedores estão construindo uma cozinha e ampliando o banheiro. A iluminação do local - quatro lâmpadas residenciais - vem de um 'gato' da fiação das câmeras de fiscalização da marginal.

A permissão para uso do local foi dada por fiscais da Prefeitura em um acordo verbal depois que eles limparam o local, que era um depósito de lixo. Luciano tem a intenção de regularizar a situação da borracharia. Barulho? Ele já se acostumou, mas é impossível sem falar e ouvir conversando em um tom normal. "Foi aqui que consegui muita coisa na minha vida. Foi o lugar que Deus me deu", afirma.

Sob o viaduto Orlando Murgel, que liga as avenidas Rudge e Rio Branco, na região central, está a entrada a favela do Moinho. Ali, com o asfalto como teto, funciona um depósito de material de reciclagem. Na manhã de quarta-feira, o local estava cheio de trabalhadores que entregavam o que haviam recolhido. O quilo do vidro vale R$ 0,25 - um carrinho chega cheio de garrafas de aguardente. Alessandra, identificada como responsável pelo local, avisa que o Estadão está atrapalhando o trabalho. Ela não responde quando questionada desde quando está ali.

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A Prefeitura de São Paulo possui um programa de concessões dos baixos dos viadutos para exploração comercial. O concessionário pode, por exemplo, vender alimentos e bebidas ou realizar eventos variados. Atualmente são quatro áreas em fases diversas de parcerias. Nos viadutos Pompeia e Antártica, na zona oeste, os contratos de concessão foram firmados, mas a pandemia obrigou à reprogramação das atividades. No viaduto da Lapa e Guaianases, os projetos ainda estão em fase de análise da documentação.

De acordo com a Prefeitura, as perspectivas são boas. "Os projetos se caracterizam como ações de requalificação destes espaços públicos por meio de instalações temporárias e realização de atividades coletivas e novas opções de lazer e cultura para a população", informou, em nota.

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