Análise: política americana contra a Venezuela coloca América Latina em momento de incerteza

Mais do que a questão energética, o que está em jogo é a configuração do poder nas Américas. Washington tenta reafirmar sua autoridade histórica no hemisfério por meio de pressão militar, retórica de força e políticas migratórias altamente restritivas.

7 dez 2025 - 07h45

A relação entre Estados Unidos e Venezuela voltou a uma zona de tensão que há muitos anos não se observava no hemisfério. Desde setembro, o governo Trump intensificou sua presença militar no Caribe, autorizou ataques extrajudiciais contra embarcações classificadas como "narcolanchas", reorganizou parte significativa da frota naval na região e passou a insinuar publicamente que Nicolás Maduro teria "dias contados" no comando do país. O conjunto dessas ações suscita um debate sobre legalidade, estabilidade continental e a redefinição do papel norte-americano na política latino-americana.

O ponto de inflexão ocorreu quando Washington iniciou uma série de ataques a embarcações supostamente envolvidas no tráfico de drogas, em operações que já provocaram dezenas de mortes. O governo justificou esses episódios como parte de um "conflito armado" contra cartéis, embora a própria administração tenha admitido, em uma sessão informativa ao Congresso, que ainda não possui base jurídica robusta para estender essas ações ao território venezuelano.

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A contradição entre o discurso oficial e a ausência de respaldo legal elevou as críticas internas e externas, sobretudo em razão da possibilidade de escalada militar sem autorização do Legislativo - requisito previsto na Constituição norte-americana para qualquer ação de guerra.

A chegada do porta-aviões Gerald Ford ao Caribe intensificou ainda mais a pressão. Trata-se da embarcação mais moderna da frota dos Estados Unidos, com milhares de militares a bordo e amplo poder ofensivo.

Quando sua presença se combinou com o deslocamento de outros navios de guerra, analistas passaram a apontar que até um terço dos recursos navais do país estava, de forma repentina, concentrado na América Latina. A movimentação surpreendeu governos vizinhos e provocou apreensão em organismos multilaterais que acompanham a segurança regional.

O discurso político também contribui para esse cenário. Trump alterna afirmações que negam a intenção de iniciar uma guerra com declarações que sugerem o contrário. Em entrevistas recentes, indicou que a Venezuela teria se comportado "muito mal" com os Estados Unidos, insinuou que Maduro perderia o poder em breve e reconheceu operações encobertas no país.

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Imprevisibilidade da estratégia abre margem para erros de cálculo

A oscilação gera insegurança porque impede a leitura clara da estratégia da Casa Branca: uma hora adota tom conciliatório, outra intensifica a retórica de confronto. A imprevisibilidade abre margem para erros de cálculo em qualquer direção.

A dimensão migratória acrescenta outro componente relevante. O segundo mandato de Trump adotou medidas mais duras contra deportados, inclusive utilizando aeronaves militares para transportá-los de volta aos países de origem.

Essa postura provocou tensões com governos como Colômbia, Brasil e México, que denunciaram condições degradantes em voos e pressões políticas exercidas por Washington.

A instabilidade gerada por essas iniciativas repercute sobre milhares de famílias e cria novos focos de atrito diplomático, justamente em um momento em que o hemisfério enfrenta forte deslocamento populacional.

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EUA se afastam dos espaços de diálogo hemisférico

Esse conjunto de fatores se insere em um processo mais amplo: o afastamento dos Estados Unidos de espaços de diálogo com o Sul Global. A Cúpula das Américas, por exemplo, foi adiada pela República Dominicana diante das divergências acumuladas em torno dos ataques extrajudiciais e do temor de uma intervenção na Venezuela.

A erosão desses fóruns, cujo objetivo principal é criar consensos, deixa um vazio que tende a ser preenchido por iniciativas bilaterais, geralmente mais frágeis, ou por atores extrarregionais em busca de maior influência.

Nesse cenário, observa-se um movimento crescente de países latino-americanos que buscam ampliar sua interlocução com a China. A posição chinesa apresenta-se como mais previsível e marcada por incentivos econômicos robustos, algo que atrai governos que desejam reduzir o grau de dependência em relação a Washington. O avanço diplomático de Pequim aparece em discursos, novos investimentos e acordos de infraestrutura, inclusive em Estados que tradicionalmente mantinham alinhamento mais estreito com a política norte-americana.

A Venezuela, nesse contexto, funciona como eixo simbólico e estratégico. O país reúne a maior reserva comprovada de petróleo do mundo, embora sua produção atual seja muito inferior ao potencial. A proximidade territorial com os Estados Unidos, os vínculos com governos de orientação socialista e a importância geopolítica de seus recursos energéticos fazem de Caracas um elemento central na narrativa doméstica de Trump. Porém, intervenções desse tipo carregam riscos elevados de instabilidade persistente, como ocorreu em outros episódios de mudança de regime promovidos por potências externas.

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Washington tenta reafirmar sua autoridade, mas resultados são ambíguos

Mais do que a questão energética, o que está em jogo é a configuração do poder nas Américas. Washington tenta reafirmar sua autoridade histórica no hemisfério por meio de pressão militar, retórica de força e políticas migratórias altamente restritivas. Os resultados, no entanto, mostram-se ambíguos: em alguns casos, governos locais adotam postura de acomodação; em outros, respondem com resistência ou buscam apoio em parceiros externos.

O Brasil observa essa conjuntura com atenção. O país enfrenta impactos diretos em três frentes: pressões migratórias, volatilidade nos fluxos comerciais e reconfiguração do equilíbrio geopolítico sul-americano. Qualquer alteração profunda no relacionamento entre Estados Unidos e Venezuela tende a produzir efeitos nas rotas de segurança regional, na cooperação fronteiriça e na articulação diplomática do continente.

O quadro atual indica que a crise ainda está em aberto. Sem clareza jurídica, sem estratégia diplomática estruturada e com sinais contraditórios sobre uma possível intervenção, a política norte-americana para a Venezuela coloca o hemisfério diante de um momento de incerteza. A forma como Estados Unidos, Venezuela e os demais países latino-americanos reagirem nos próximos meses definirá o tipo de ordem regional que prevalecerá nas próximas décadas.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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