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Movimentos vão se multiplicar para que mais gente com condições físicas, neurológicas ou sensoriais, a exemplo da fibromialgia e da visão monocular, faça parte do grupo das pessoas com deficiência, mas é fundamental esclarecer a função primordial da avaliação biopsicossocial nesse processo e reafirmar que não há inclusão parcial, com exceção, ela só existe de fato quando ninguém está apartado.
A sanção da Lei nº 15.176/2025, "para prever programa nacional de proteção dos direitos da pessoa acometida por Síndrome de Fibromialgia ou Fadiga Crônica ou por Síndrome Complexa de Dor Regional ou outras doenças correlatas" e "equiparação da pessoa acometida pelas doenças à pessoa com deficiência" gerou críticas sobre a necessidade de uma legislação com essa especificidade - discussão importante sobre até qual ponto isso pode ou não enfraquecer, principalmente politicamente, o movimento das pessoas com deficiência - e, novamente, acusações sobre como esse 'aumento' da quantidade de gente com deficiência dificulta ainda mais o acesso ao mercado de trabalho, a vagas reservadas em concursos e a benefícios sociais, entre outra garantias.
Repetiu-se a dinâmica de ataques observados quando foi sancionada a Lei nº 14.126/2021, que classifica a visão monocular como deficiência sensorial do tipo visual.
Há um detalhe fundamental sobre a inclusão de gente com fibromialgia no grupo das pessoas com deficiência, determinado no Art. 1º-C: "A equiparação da pessoa acometida pelas doenças de que trata o art. 1º desta Lei à pessoa com deficiência fica condicionada à realização de avaliação biopsicossocial por equipe multiprofissional e interdisciplinar que considere os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação na sociedade, nos termos do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência)".
Não é a causa, por si só, ou seja, apenas o diagnóstico de fibromialgia ou doenças correlatas, que torna o indivíduo automaticamente alguém com deficiência, mas são as consequências dessa condição na vida da pessoa, quando confirmadas pela avaliação biopsicossocial, que poderão atestar o identificação.
Uso como referência para essa afimação a minha situação pessoal. Tenho a polineuropatia de Charcot-Marie-Tooth, condição congênita que enfrento desde meu nascimento, há 54 anos, e que, atualmente, provoca restrições crônicas na mobilidade, na força e no equílbrio, o que me obriga ao uso de uma bengala e ao extremo cuidado ao andar, mesmo dentro de casa, para evitar quedas e possíveis ferimentos. Antes de ter uma deficiência aparente a olhos leigos, fui muitas vezes questionado a respeito de minha apresentação como pessoa com deficiência - foi agressivo ao ponto de até eu duvidar dessa minha identidade -, chamado de "farsante" por colegas de trabalho e acusado de "roubar o espaço de quem realmente tem deficiência" quando ocupei, na Rádio CBN, em São Paulo, entre 2006 e 2011, uma vaga reservada, a única vez em minha jornada profissional, conforme estabelecido pela Lei de Cotas (nº 8.213/2025).
Naquela ocasião, eu já acumulava uma década de atuação como jornalista e posso dizer, com experiência e cicatrizes, que é terrível ser alvo de tamanha discriminação, ignorante e infundada, principalmente porque sei exatamente quais são as minhas dores e de que maneira determinadas funções do meu corpo não estão presentes.
Por toda a vida fui submetido e muitas avaliações de saúde, exames bastante desagradáveis e obtive laudos que não condiziam com minha real condição. O episódio mais recente é emblemático. Passei por perícia recente no INSS para uma ação judicial e fui classificado com "deficiência leve", mas isso não condiz com minha situação atual. Naquele momento, sentado, com minha cognição totalmente funcional, meu intelecto pleno, respondi a perguntas como "você cozinha?" (sei fazer ótimos ovos mexidos), "lava louça" (não, porque escapam das mãos e quebram), "toma banho em pé ou sentado?" (em pé, apoiado nas barras fixadas às paredes).
De nada serviu explicar que não tenho mobilidade para me lavar enquanto estou sentado, fico exausto ao sair do chuveiro por causa das minhas insuficiências cardíaca e respiratória, meu corpo está enrigecendo e dói constantemente por causa das atrofias, andar é bastante difícil, mais ainda subir e descer escadas, precisei mudar a pegada da caneta para escrever porque o movimento fino da minha mão direita está comprometido, enfrento cansaço diário pela junção de todas essas limitações e a falta de acessibilidade nas cidades, nos prédios, pelo mundo afora, dificulta em nível elevado minha atuação profissional, exatamente o tipo de informação que a avaliação biopsicossocial da deficiência considera fundamental.
O atual governo federal assumiu muitas vezes um compromisso com a regulamentação da avaliação biopsicossocial. A promessa mais recente surgiu nesta semana, durante a sessão de aprovação do PLP que regulamenta a reforma tributária.
Em julho, o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do projeto da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/2015), afirmou com exclusividade ao blog Vencer Limites (Estadão) que "a regulamentação do Estatuto da Pessoa com Deficiência é uma prioridade absoluta, especialmente no que diz respeito à avaliação biopsicossocial. Essa avaliação é fundamental, pois inúmeras políticas públicas aguardam a definição clara do que caracteriza a deficiência".
No ano passado, uma importante atualização a respeito da avaliação biopsicossocial da deficiência foi apresentada pelo governo federal na 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que teve a participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no encerramento e a assinatura de documentos sobre o tema.
Lula recebeu da secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Anna Paula Feminella, o relatório produzido durante um ano pelo grupo de trabalho instituído no Decreto n° 11.487, de 10 de abril de 2023.
"O principal objetivo deste relatório é propor uma metodologia de avaliação da deficiência que vá além do modelo médico tradicional, reconhecendo a deficiência como uma interação complexa de fatores biológicos, psicológicos e sociais. A intenção é alinhar esta avaliação com os princípios da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão", destaca o relatório.
Sim, queremos a regulamentação da avaliação biopsicossocial, mas vamos aceitar o que essa mudança vai revelar sobre cada um e todos nós?
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