Negro e pobre: o perfil dos desaparecidos no Brasil

54% das pessoas desaparecidas no País são pretas ou pardas. Em alagoas, mãe vendeu a casa para procurar o filho

3 jul 2022 - 05h00
Elias tinha 14 anos quando foi visto pela última vez, na casa dos avós, onde passava férias em Alagoas
Elias tinha 14 anos quando foi visto pela última vez, na casa dos avós, onde passava férias em Alagoas
Foto: Irenilda Conceição/Arquivo Pessoal

"Vendi minha casa, minha lojinha de roupa e saí do trabalho que tinha numa cooperativa de reciclagem para procurar meu filho sozinha. Foram cinco meses nessa loucura, até que a falta de respostas me desanimou. Agora só fico esperando que as notícias sobre o meu filho cheguem do interior", conta Irenilda Maria da Conceição, 44 anos, mãe de Elias Natanael dos Santos, visto pela última vez no dia 14 de janeiro de 2014, quando ainda era adolescente, aos 14 anos de idade, e passava férias na casa dos avós, no município alagoano de Passo do Camaragibe, em Alagoas. 

O garoto sumiu depois de ter presenciado uma briga entre o avô e um vizinho, que gerou um alvoroço dentro de casa e fez com que ele passasse horas longe antes de o desaparecimento ser notado. Elias tem um perfil recorrente entre as pessoas desaparecidas no País: a cor da pele. De acordo com o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid), criado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, mais de 54% das pessoas desaparecidas no Brasil são pretas ou pardas.Há casos de pessoas que não são vistas pelos familiares há décadas, como é possível constatar no sistema, que possui o registro de 85.524 casos, um deles ocorrido em 1945.

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“Passei mais um menos uns cinco meses desesperada, não tinha iniciativa para mais nada. No começo, a polícia me ajudou, me colocou na viatura para procurar o Elias no interior, nas fazendinhas por ali por perto, mas depois acabou. Teve um tempo que eu não saía de dentro da delegacia, aí foi quando o delegado disse que não tinha bola de cristal para adivinhar onde era que estava meu filho. Ele acabou comigo”.

Padrão

Para o professor e historiador Zezito Araújo, os números encontram explicação em fatos passados, que construíram a história do racismo no Brasil. "Temos que entender que a pessoa negra no Brasil desde o período colonial foi percebida como um objeto descartável, a partir do momento que não mais tinha condições para produzir para o sistema escravista. Em outro momento, pós abolição e com a implantação da República, outros controles sociais foram criados para manter essa população nos espaços e desqualificar ainda mais o corpo negro. Nesse sentido, o desaparecimento da pessoa negra na sociedade brasileira, a omissão do Estado e a falta de mobilização da sociedade para encontrar essas pessoas fazem parte da política do extermínio e controle social da população negra brasileira. A cor da pele é sim um dos determinantes para termos esses dados de pretos e pardos desaparecidos", afirma.

Professor e historiador afirma que o desaparecimento de pretos e pardos encontra explicações na história da escravidão no Brasil
Foto: Zezito Araújo/Arquivo Pessoal

E além disso, se as medidas para solucionar os casos estão longe de serem efetivas, ele atribui também à discriminação sofrida pelo negro no Brasil, não só na sociedade, mas também nos órgãos públicos.

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"A cor da pele negra na sociedade brasileira tem uma representação simbólica negativa, ligada no imaginário à violência, à suspeição. Além dessas variantes, a pessoa preta ou parda é do grupo social que está na base da pirâmide social, os mais pobres, que não mobilizam os meios de comunicação e os órgãos responsáveis pelos desaparecidos e desaparecidas", afirma.

Dona Irene procura o filho Elias Natanael há oito anos
Foto: Irenilda Conceição/Arquivo Pessoal

Esperança

“Vou falar para a senhora, acredito que, porque a gente é humilde, a gente não costuma falar bem, eles não dão muito valor, eles não vêm nos procurar para dar uma resposta, chamar a gente. Quando a gente foi para a televisão, e fez reportagem, aí o delegado achou nosso número e entrou em contato com a gente, mas até agora nada”, lamenta.

O Portal Terra entrou em contato com o delegado atual de Passo do Camaragibe, Valter Nascimento, e ele informou que assumiu a delegacia há pouco tempo, mas iria se inteirar do caso. Dias depois, a reportagem retomou o contato, mas ele disse que não conseguiu novas informações sobre o desaparecimento.

Recentemente, a esperança de dona Irene foi renovada por uma iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública com as Secretarias de Segurança Pública Estaduais. Ela teve material biológico coletado para que suas informações sejam inseridas na Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos.

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Com isso, o perfil genético dela será confrontado semanalmente com perfis de todo o Brasil, sejam de pessoas vivas ou de corpos não identificados ou não reclamados nos Institutos Médicos Legais. O trabalho é animador, mas ainda dá os primeiros passos. Só em Alagoas, onde ela mora, existem 800 corpos não identificados que vão passar pela coleta de material.

Dona Irene também tem se animado com outra iniciativa, da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas, que foi a criação do Comitê Gestor Estadual de Política Nacional de Busca por Pessoas Desaparecidas, que ela integra como representante da sociedade civil.

“É uma nova esperança de que eles vão abrir o caso de novo e botar para frente. É importante também fazer parte do comitê porque eu converso com pessoas na mesma situação que eu, tento ajudar essas pessoas e também posso ver o caso do meu filho ser aberto de novo. Recebo apoio das pessoas que me ajudam, eu sinto que agora vou ver a coisa acontecer”, diz.

Jovens são maioria entre desaparecidos

Os casos de desaparecimentos no Brasil começaram a ser registrados pelo Sinalid em 2010, em uma versão que era limitada ao estado do Rio de Janeiro. Em 2013, o Ministério Público de São Paulo passou a usar também a plataforma. E em 2017, foi quando os dados passaram a chegar de todo o Brasil.

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Além dos Ministérios Públicos estaduais, órgãos da  segurança pública, da assistência social e da saúde, nas esferas federal, estadual e municipal passaram a colaborar com informações e dados, e conseguiram chegar ao perfil, ainda que parcial, das pessoas desaparecidas. 

A maior parcela é de jovens de 12 anos a 17 anos, mas os percentuais são altos também entre pessoas de 18 a 40 anos de idade. O Sinalid também aponta em que estado ocorreu o registro: São Paulo e Rio saem na frente com mais de 60 mil casos. Mas a realidade é que há ainda muitas dificuldades para levantar com precisão o perfil dos desaparecidos no Brasil.

Dona Irene no dia em que coletou material biológico para ter o perfil genético inserido em um banco nacional de dados
Foto: Polícia Científica de Alagoas

"A partir da experiência do Rio de Janeiro, percebeu-se que qualquer plataforma de dados fosse limitada a uma instituição não seria efetiva. Grande quantidade de pessoas ‘desaparecidas’ são encontradas institucionalizadas (hospitalizadas, acolhidas, presas, falecidas), situações em que a troca rápida de informações estruturadas em uma plataforma utilizada por muitas instituições é fundamental.

O desaparecimento ganha muita complexidade quando pensamos que algumas estruturas desta rede estão na esfera federal, outras na estadual e outras nas municipais. Desta forma, o Ministério Público se cotizou dentro dos seus ramos para convencer todas as estruturas a participar. Não é uma tarefa fácil, mas temos avançado. O objetivo é que a alimentação dos dados e, mais que isso, o uso do sistema, possa de fato resolver alguns problemas encontrados em órgãos públicos e que dificultam a localização de pessoas desaparecidas, dentre elas, a referida falta de ‘catalogação’”, informou, por e-mail, o Conselho Nacional do Ministério Público.

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A iniciativa tem dado resultados, mas ainda há muito a ser mudado nas estruturas dos órgãos públicos e na sociedade para reduzir o índice de casos e, em especial, o número de pretos e pardos sumidos, como destaca o professor Zezito Araújo.

“O racismo está presente na estrutura funcional dos órgãos, bem como nas pessoas que as coordenam e nos funcionários. Esse racismo, hoje conhecido como racismo estrutural, impede que as políticas de localização de pessoas pretas e pardas sejam efetivas. É emblemática essa quantidade de pessoas pretas e pardas desaparecidas no Brasil, 50%”, reforça.

Para ele, é necessário além da estruturação da rede de busca e localização de pessoas, a capacitação dos profissionais que nela atuam. “É necessário dar formação aos profissionais que trabalham nos órgãos públicos sobre relações étnico-raciais e racismo no Brasil, ter maior número de pessoas pretas e pardas nesses órgãos, aportar mais recursos financeiros e humanos nesses órgãos e realizar campanhas nacionais para localizar os desaparecidos com recorte étnico-racial”, aponta.

Fonte: Redação Nós
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