Audiência ignora lei e discute cartilha que diz que 'todo aborto é crime'

Manual voltado a profissionais de saúde causou reação; entidades afirmam que texto cria insegurança jurídica e obstáculos ao procedimento legal

28 jun 2022 - 18h58
(atualizado às 22h41)
Audiência do Ministério da Saúde discute cartilha que diz que 'todo aborto é um crime'
Audiência do Ministério da Saúde discute cartilha que diz que 'todo aborto é um crime'
Foto: Poder360

O Ministério da Saúde realizou nesta terça-feira, 28, uma audiência pública para discutir o teor de uma cartilha publicada pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde com orientações sobre o procedimento do aborto. O documento, de 7 de junho, afirma que "todo aborto é um crime" e provocou reação de grupos de pesquisa e entidadades de defesa da mulher.

O manual intitulado Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento é voltado para gestores e profissionais de saúde. Segundo a cartilha, "não existe 'aborto legal' como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos". Para a Secretaria de Atenção Primária à Saúde do ministério, o que existe "é o aborto com excludente de ilicitude".

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A cartilha diz ainda que "todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno". Diferentemente do que afirma a cartilha, o aborto é permitido no País em caso de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2012.

O próprio manual pondera que essa discussão "tem pouca relevância", uma vez que a gravidez tem tempo limitado e "seria impossível aguardar transcorrer todo um procedimento para apurar se houve crime, ou não".

O documento provocou reações de grupos de pesquisa e entidades ligadas à defesa da mulher. Em carta à Secretaria de Atenção Primária à Saúde, 78 organizações pediram a revogação do manual. Para as entidades, a cartilha não cumpre a finalidade de apoiar profissionais de saúde nos casos de abortamento e, pelo contrário, impõe "obstáculos à concretização do direito à saúde de mulheres, meninas e pessoas que gestam".

Entre as organizações signatárias da carta em reação ao manual do Ministério da Saúde estão a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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Em relação ao trecho do manual que indica que "todo aborto é um crime", as organizações ponderam que a declaração soa como tentativa do ministério "de confundir sobre a licitude do procedimento realizado dentro das hipóteses legais". A menção do documento à "investigação policial" também cria, segundo as entidades, insegurança jurídica aos profissionais, "que temerão uma investigação sobre cada decisão de cuidado que tomem sobre as mulheres".

A discussão sobre o documento ocorre após a repercussão nacional de dois casos de gravidez em contexto de violência contra a mulher. No fim de semana, a atriz Klara Castanho teve exposta sua decisão de entregar voluntariamente para adoção um bebê gestado após um estupro. Klara descobriu a gravidez tardiamente e não conseguiu fazer o aborto. A atriz foi atacada nas redes sociais pela decisão prevista em lei de entregar o bebê.

Semanas antes, uma menina de 11 anos que havia sido estuprada teve o procedimento de aborto negado por uma juíza em Santa Catarina. A magistrada, Joana Ribeiro Zimmer, questionou se a menina não "suportaria ficar mais um pouquinho (com o feto)". Joana foi uma das convidadas pela Secretaria de Atenção Primária para participar da audiência pública nesta terça-feira, mas não compareceu.

Além da juíza, foram chamados as deputadas federais Janaina Paschoal (PRTB-SP) e Bia Kicis (PL-DF) e o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Filho, que discursaram na reunião transmitida online. Representantes de entidades médicas como a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) também foram convidados.

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Em sua fala, na audiência pública, a representante da SBPC, antropóloga Lia Zanotta Machado, lembrou que "abortamento no caso de estupro, risco de morte da gestante e má formação fetal com impossibilidade de vida extrauterina não conforma tipicidade, ilicitude e culpabilidade e, portanto, o abortamento é legal". Ela também pontuou que o aborto legal, em caso de estupro, não tem idade gestacional máxima para ocorrer, conforme a legislação.

O manual do Ministério da Saúde afirma que "sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de aborto com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias".

O Secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, por sua vez, defendeu o documento. Segundo ele, as cartilhas anteriores sobre o tema precisavam ser atualizadas. Em relação à investigação criminal, ele ponderou que uma lei obriga a denúncia sobre o estupro. Em 2020, uma portaria determinou a notificação dos estupros que ensejam interrupção de gravidez.

"Hoje, elas dizem que depende da mulher ou da mãe da criança ou do pai da criança decidir se vai denunciar ou não. Não, não cabe. É incondicionada à vontade da vítima. Tem de ser denunciado. E aí eu sou perseguido por sites, pela imprensa. 'Ministério da Saúde quer que vítimas de estupro sejam investigadas após aborto'. E não é para investigar vítima de estupro? Tem de entender o que a gente quer."

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"Essas orientações criminalizam não somente as mulheres, mas também os profissionais de saúde que delas cuidam, entre eles, os ginecologistas e obstetras", afirmou a Febrasgo em seu site sobre a cartilha do Ministério da Saúde. Raphael Câmara ainda relativizou dados sobre mortes relacionadas ao aborto no Brasil e disse não concordar com "matar bebê na barriga". "Como obstetra, não dá. Essa sociedade que acha que é normal matar bebê na barriga com 7, 8, 9 meses...Eu não quero fazer parte dessa sociedade."

Outros convidados contrários ao aborto, que participaram da audiência, apoiaram o texto. Segundo a secretária nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Gandra, a cartilha ajuda a não levar casos de gravidez ao aborto. "É interessante falar do abortamento como exceção, do abortamento nos casos previstos em lei. E isso prepara também para não induzir os técnicos a levarem imeditamente ao aborto."

Em viagem a Lisboa, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também se posicionou nesta terça-feira sobre o tema, em consonância com a cartilha da pasta. "Estupro é crime tipificado no Código Penal, como o aborto também é", disse o ministro Ele reiterou que o governo Jair Bolsonaro é favorável à "defesa da vida desde a concepção" e criticou eventuais iniciativas do Judiciário para descriminalizar o que chamou de "aborto injustificado".

No fim da audiência, Câmara disse que levará em consideração as contribuições recebidas na audiência e que o texto poderá passar por mudanças, sem detalhar quais. "Certamente, haverá modificações no nosso manual. Podemos colocar diversas opiniões."

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