NOTA: A notícia a seguir aborda violência extrema contra mulheres e pode ser sensível para algumas pessoas. Se você ou alguém que você conhece está em situação de risco, denuncie pelo 180. Em emergências, acione a Polícia Militar pelo 190.
A Polícia Civil da Bahia investiga como feminicídio a morte de Rhianna, mulher trans de 18 anos, assassinada com um golpe conhecido como "mata-leão" no oeste do estado. O caso ocorreu em Luís Eduardo Magalhães e ganhou repercussão nacional após o principal suspeito, Sérgio Henrique Lima dos Santos, de 19 anos, ter sido liberado mesmo após se apresentar à delegacia com o corpo da vítima.
Segundo a polícia, o suspeito — motorista por aplicativo — compareceu espontaneamente à unidade policial, confessou o crime e alegou legítima defesa. Ele estava acompanhado por uma advogada no momento do depoimento e foi liberado por não haver situação de flagrante, conforme informou a corporação.
Versão apresentada pelo suspeito
Em depoimento, Sérgio afirmou que contratou Rhianna, que morava em Luís Eduardo Magalhães, para um programa em Barreiras. Após o encontro, ele a levou de volta para casa. Durante o trajeto, conforme sua versão, houve uma discussão e a vítima teria ameaçado expor o encontro e fazer uma acusação de estupro.
Ainda segundo o suspeito, ele teria reagido após a jovem fazer um movimento que indicaria que buscaria algo dentro da bolsa. A polícia não esclareceu se houve ou não violência sexual nem se a acusação mencionada por ele seria falsa. O motorista alegou que agiu para se defender.
Após o crime, ele levou o corpo de Rhianna até a delegacia e pediu ajuda aos policiais. O Samu foi acionado, mas a vítima já estava morta. Mesmo assim, o suspeito foi liberado.
Família pede Justiça
Familiares e pessoas próximas de Rhianna se manifestaram nas redes sociais pedindo responsabilização do autor do crime. Uma parente lamentou a morte da jovem e a forma como o caso tem sido tratado.
"Não tiraram a vida de uma simples pessoa. Tiraram a vida de um ser humano cheio de luz, de vontade de viver, de vencer. Tiraram uma filha de uma mãe, uma irmã, uma pessoa muito importante para nós", escreveu.
Em outra publicação, a mesma familiar demonstrou revolta com a liberdade do suspeito. "Levaram ela a troco de nada. Eu aposto que aquele inútil está vendo minhas postagens no sofá da casa dele e rindo."
O sepultamento deve ocorrer em América Dourada, cidade a cerca de 240 quilômetros de Salvador, embora a data ainda não tenha sido divulgada.
Críticas à condução do caso
A liberação do suspeito gerou críticas públicas. A influenciadora, escritora e professora Bárbara Carine questionou a atuação da Polícia Civil de Luís Eduardo Magalhães, afirmando que a postura adotada reforça a impunidade em crimes de transfobia.
"Essa não é a conduta que se espera da Polícia Civil e de um delegado de polícia. Situações como essa não podem abrir precedente", afirmou.
À TV Bahia, o advogado criminalista Miguel Bonfim explicou que a liberação está prevista na legislação brasileira. Segundo ele, a prisão só pode ocorrer em flagrante ou por decisão judicial fundamentada.
"A regra no ordenamento jurídico brasileiro é que a pessoa responda ao processo em liberdade. Por mais chocante que isso possa parecer, a Constituição prevê a presunção de inocência até o trânsito em julgado", explicou.
Acompanhamento institucional
Em nota, o Ministério Público da Bahia (MPBA) informou que acompanha o caso e vai requisitar informações para avaliar as medidas cabíveis. A investigação também é monitorada pela Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-BA.
Para o presidente da comissão, Ives Bittencourt, o caso causa preocupação. "Ele aplicou um mata-leão e matou uma mulher trans diante de uma suposta ameaça. A OAB da Bahia seguirá acompanhando de perto as investigações."
ALTA NA TAXA DE FEMINICÍDIO
Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostra que São Paulo concentra parte significativa dos feminicídios do estado: um em cada quatro casos consumados ocorreu na capital. A comparação entre janeiro e outubro de 2025 e o mesmo período de 2024 indica alta de 23% na cidade. Em relação aos dados de 2023, o avanço chega a 71%.
O estudo aponta que a violência fatal contra mulheres segue um padrão consolidado. A residência da vítima permanece como principal cenário dos crimes (67%), e armas brancas ou objetos contundentes foram utilizados em mais da metade dos casos registrados no estado.
Adriana Liporoni, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher em São Paulo, destaca que o feminicídio costuma ser o último estágio de agressões contínuas. Para ela, o aumento das notificações é resultado tanto da escalada dos conflitos nos relacionamentos quanto da melhoria na classificação e no registro legal desses crimes.
A coordenadora lembra que a tipificação do feminicídio, criada em 2015, ampliou a precisão das estatísticas ao separar esses crimes dos registros gerais de homicídio. Segundo ela, esse avanço contribuiu para identificar melhor a motivação de gênero, mas não explica sozinho o aumento das ocorrências. A delegada aponta que parte do crescimento reflete também a intensificação da violência extrema, muitas vezes ligada à tentativa de controle e à reação desproporcional de agressores diante do fim do relacionamento.
Mesmo com o aprimoramento das leis, Liporoni destaca que a resposta estatal ainda enfrenta limitações. "O grande desafio está na prevenção e na capacidade de identificar os primeiros sinais do ciclo violento", afirma. Ela explica que, quando os primeiros indícios são reconhecidos e a rede de apoio consegue agir rapidamente, há mais chances de interromper a escalada antes que ela chegue ao extremo.
Para Malu Pinheiro, do Instituto Sou da Paz, o perfil dos feminicídios exige estratégias específicas. Como a maioria é cometida por parceiros, ex-parceiros ou familiares — geralmente dentro da residência —, a abordagem precisa ser distinta da adotada em outros crimes contra a vida. Ela defende a ampliação dos serviços de acolhimento e proteção, fundamentais para que as mulheres consigam romper vínculos abusivos com segurança.
A gravidade desses ataques também impressiona profissionais acostumados a lidar com cenas de violência. À Folha de S.Paulo, a fotógrafa técnico-pericial Telma Rocha, com mais de três décadas de atuação em ocorrências de homicídio, relatou o impacto das cenas que testemunha.
"[Mulheres] queimadas, amarradas, espancadas, mutiladas. Mas o que mais me chama a atenção e, muitas vezes me quebra, são os ferimentos de defesa. Cortes nas mãos, nos braços e unhas quebradas. Isso me destrói, pois chega a passar a cena na minha imaginação. É muito cruel."