Clássico do Dia: Lição de cinema narrativo, '...E o Vento Levou' mantém a aura de filme único

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão'; neste, frases marcantes e cenários incríveis, com elenco com nomes como Vivien Leigh e Clark Gable

24 mai 2020 - 08h10

Em 1939, um diretor que crítico nenhum ousaria definir como grande, Victor Fleming, assinou dois dos maiores filmes já feitos, e ganhou o Oscar da categoria por um deles - ...E o Vento Levou. O outro, O Mágico de Oz. O curioso é que, se forem considerados do ponto de vista da autoralidade, são obras seminais de uma tendência muito forte do cinema de Hollywood. Há um tema que, desses filmes até E.T - O Extraterrestre, de Steven Spielberg, no começo dos anos 1980, e em obras posteriores unifica a produção industrial e autoral, o retorno ao lar. No caso desses dois clássicos, é mera coincidência. Nenhum desses filmes nasceu de uma escolha de Fleming, e em ambos ele foi um dos muitos diretores que se revezaram no comando, no primeiro, sob o olhar vigilante do produtor David O' Selznick, ele, sim, o verdadeiro responsável pelo projeto.

Antes de virar filme, de quase quatro horas, ...E o Vento Levou foi livro de Margaret Mitchell, que começou a escrevê-lo em 1925. Passaram-se mais de dez anos de escrita e reescrita, até a publicação, em 1936. Gone with the Wind, o livro, ganhou o Prêmio Pulitzer e o National Book Award, recebendo o aval dos críticos pela maestria com que a autora constroi sua narrativa sobre temas caros à cultura popular - amor, aventura, paixão -, tudo contra o fundo de um período de grande turbulência social, a Guerra Civil dos EUA, no século 19. O' Selznick adquiriu os direitos e, em três anos, colocou o romance na tela com a grandiosidade que ele exigia. Só a escalação do elenco garantiu a maior campanha de publicidade, até então. Cada novo nome era alvo de extensas reportagens, mas o início da filmagem se aproximava e o grande mistério permanecia - quem seria a atriz no papel da personagem central?

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Scarlett O'Hara transformou-se numa obsessão para o público leitor e no desafio que todas as estrelas queriam encarar. O' Selznick fez teste atrás de teste, dando a maior divulgação a atrizes de prestígio que iam sendo recusadas. E aí, conta a lenda que Laurence Olivier, convidado a assistir à rodagem do primeiro dia - o incêndio de Atlanta -, chegou acompanhado pela mulher. Ele teria dito a O' Selznick - "Trouxe comigo Scarlett". Era Vivien Leigh, que realmente ganhou o papel e o Oscar de melhor atriz, um dos oito atribuídos ao filme na competição da Academia, mais o Irving Thalberg Award para Selznick (por seu esforço épico na concretização do projeto) e uma estatueta especial para William Cameron Menzies, pelo uso da cor.

...E oVento Levou fez história por múltiplos aspectos. Foi o primeiro filme a arrebanhar todos esses prêmios e permaneceu por 20 anos - até Ben-Hur, de William Wyler, de 1959 - como a maior bilheteria do cinema. Em valores corrigidos, outros filmes o superaram na bilheteria, mas em termos de público existem projeções que o apontam como o filme mais visto da história, embora o número de espectadores nunca tenha sido estabelecido com precisão. ...E o Vento Levou recebeu o primeiro Oscar atribuído a um negro, a atriz Hattie McDaniel, que venceu como coadjuvante, mas as leis racistas da Georgia, onde o filme estreou, impediram-na de participar da sessão inaugural. Vários escritores participaram do roteiro, mas os créditos (e o prêmio) foram para Sidney Howard. George Cukor, Sam Wood e Cameron Menzies se alternaram na direção, mas o crédito ficou com Victor Fleming, que venceu o Oscar.

O filme conta a história de Scarlett, a beldade sulista - bela, indomável, mimada - que ama o cavalheiro Ashley Wilkes, mas ele se casa com a virtuosa, um exemplo de altruísmo, Melanie. Despeitada, Scarlett aceita o primeiro pretendente que lhe aparece, mas ele morre na Guerra Civil. Ela aceita a corte e até se casa com o aventureiro Rhett Butler, que tem um temperamento tão forte quanto o dela e passa por ser um aproveitador, lucrando com aguerra. Mas Rhett, à sua maneira, também é um gentleman e salva, com a cumplicidade da dona do bordel, a vida de Ashley, mesmo sabendo que ele é o homem que sua mulher ama. Quando, ao fim de idas e vindas, ela descobre que ama o marido, ele diz a frase que virou uma das réplicas mais conhecidas do cinema - "I don't give a damn". Há mais de 80 anos, a frase foi considerada ofensiva, contrária ao código de moral e costumes da indústria, mas O' Selznick correu o risco (e também diz a lenda que pagou multa).

O filme começa e termina na mansão senhorial de Tara, que representa o refúgio de Scarlett. Tara é a ligação dela com a terra e, no desfecho, ela volta para se fortalecer, da mesma forma que, no fim do primeiro ato - o filme divide-se em duas partes -, ela pegou da terra para fazer seu juramento. Face à dificuldade imposta pela guerra, ela jura que nunca mais passará fome, nem que tenha de mentir, roubar, trapacear (e o que mais for preciso). Isso era impensável na puritana Hollywood da época, que glorificava as mães e condenava as mulheres de má fama. Uma das grandes cenas é quando Melanie vai até Ona Munson, como Belle, a dona do prostíbulo, para lhe agradecer pela vida do marido. É um daqueles momentos redentores do cinema - a grande dama, Olivia de Havilland, e a prostituta, num diálogo improvável.

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Além de Vivien e Olivia, o elenco mítico inclui Clark Gable, o astro que era chamado de Rei em Hollywood, como Rhett e Leslie Howard como Ashley. ...E o Vento Levou pode não ser o maior filme já feito, mas proporciona, com certeza, uma portentosa lição de cinema narrativo. A arte de contar uma (grande) história. Algumas cenas já nasceram antológicas - o extraordinário plano da estação, em que a câmera se afasta para mostrar, do alto, a multidão de feridos (e naquele tempo não existiam efeitos digitais multiplicadores, tinha de ser mesmo multidão). A direção de arte, senão rigorosamente a direção, ajuda a resolver genialmente os problemas de tempo e espaço. ...E o Vento Levou antecipa Cidadão Kane, de Orson Welles, que surgiria dois anos depois. A suntuosa escadaria, cenário de um momento decisivo, possui a desmedida do décor da casa do milionário Charles Foster Kane. E a volta de Ashley ferido, avançando de longe, antecipa o uso da profundidade de campo por Greg Tolland no Welles (mesmo repetindo um plano parecido do fotógrafo em O Morro dos Ventos Uivantes, de William Wyler, de 1938).

A fotografia, de Ernest Haller e Ray Rennahan, foi um dos tantos Oscars que o filme recebeu. O retorno ao lar ganhou emblema como tema e, no mesmo ano, Dorothy, a jovem Judy Garland - que ganhou um Oscar especial - foi levada pelo ciclone de sua casa no Kansas para o mundo mágico de Oz e passa o filme inteiro tentando voltar. Victor Fleming abandonou o set de O Mágico de Oz para finalizar ...E o Vento Levou, cujos diretores iam sendo demitidos. O filme foi finalizado pelo produtor Mervyn LeRoy, com a ajuda não creditada de Richard Thorpe, George Cukor e até King Vidor. A casa, o eterno retorno. Depois de ver o filme e conferir a força magnética da personalidade de Scarlett, espectador nenhum duvidará que o happy end foi apenas adiado e ela, no refúgio de Tara, conseguirá arquitetar o movimento para trazer Rhett Butler de volta. O tempo passa e ...E o Vento Levou mantém a aura de filme único.

Filme pode ser visto nas plataformas on demand Filmes no YouTube e Google Play Filmes.

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