Como executivos estão ensinando jovens da periferia para trabalhar no setor de tecnologia

Programas de mentoria executiva transformam realidade de famílias ao inserir jovens no mercado de trabalho

31 jul 2022 - 05h11
(atualizado em 8/8/2022 às 09h43)

ESPECIAL PARA O 'ESTADÃO'. Num cenário de escassez de mão de obra e alto índice de desemprego entre os jovens, uma saída tem sido buscar na fonte os talentos necessários. E, muitas vezes, eles não estão no banco da universidade, mas na periferia. Atentos ao problema, empresas e ONGs decidiram criar programas de mentorias e capacitação para ensinar aos jovens soft skills exigidas pelo mercado de trabalho e aproveitar os talentos nos setor de tecnologia - área que tem sofrido com a falta de profissionais.

Uma pesquisa recente da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação apontou que no Brasil há uma demanda anual de 159 mil profissionais, mas apenas 53 mil pessoas se formam por ano na área. A estimativa é que a demanda de empresas do setor seja de 797 mil profissionais até 2025, o que representa um déficit anual de 106 mil pessoas formadas.

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Ryan de Jesus foi um dos jovens que teve mentoria de executivos no programa da ONG PAC Foto: Marcelo Chello / Estadão

De olho nesse cenário, a ONG Projetos Amigos das Crianças (PAC), que oferece cursos para pessoas de extrema vulnerabilidade social nas regiões de Pirituba, São Domingos e Jaraguá, em São Paulo, resolveu criar um programa de mentoria que conecta executivos de empresas de tecnologia aos alunos de formação profissional para ajudar a aprimorar ferramentas comportamentais.

A iniciativa faz parte do projeto "Jovem com Futuro", que forma semestralmente 45 alunos de 15 a 24 anos na Comunidade de Cantagalo, no noroeste da capital paulista. O objetivo é prepará-los para o mundo do trabalho e colocá-los como protagonistas da aprendizagem. Além de auxiliar os jovens no desenvolvimento das soft skills do momento, os cursos contemplam aulas de matemática, gestão empresarial e ferramentas tecnológicas, enquanto os alunos recebem de seus mentores dicas, conselhos e direcionamentos de carreira.

Para Ryan de Jesus, de 20 anos, nascido e criado em Pirituba, o curso foi um divisor de águas. Cheio de energia e rapper desde a adolescência, ele conta que cresceu numa família sem estrutura financeira. A mãe sempre trabalhou como empregada doméstica, mas teve de interromper as atividades devido a problemas de saúde. Isso fez com que ele assumisse a missão de trazer renda para casa aos 14 anos.

Entregou panfletos, lavou ferramentas em oficinas e comprou uma moto para fazer serviços de entrega. Mas quando estava no terceiro colegial perdeu a moto. Foi quando conheceu o PAC. "Consegui o curso de gestão empresarial. Era totalmente de graça e me entregou muito mais do que outros que eu já tinha feito com bolsa", relata.

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Mentores

Ao longo do curso, Ryan conta que não teve só um mentor, mas um time de mentores. Além de Cristiano Toni Bonfim, da Decolar, que foi seu mentor oficial, ele também aprendeu habilidades técnicas e comportamentais com o coordenador do projeto, Marcos Nascimento, e Fábio Miranda, cofundador do Instituto Favela da Paz e professor de gestão empresarial na ONG.

"Aí chegou a hora de apresentar o TCC. A gente tinha de montar uma empresa e a nossa era de soluções solares, desenvolvedora de uma árvore solar para lugares com difícil acesso à internet", conta ele. "Tinha umas 70 empresas assistindo. O Alex me ligou no mesmo dia oferecendo uma oportunidade de trabalhar na Neocantra."

O Alex a que ele se refere é o analista de sistemas, com MBA em gestão empresarial, Alex Maestrello, que é mentor do Jovem com Futuro há quatro anos e na época trabalhava na consultoria de tecnologia. "Tenho muito orgulho de fazer parte de tudo isso. Quando conheci o PAC, foi amor à primeira vista", afirma o executivo.

Hoje, diretor de prática ERP na Techedge Brasil, o executivo, de 53 anos, acredita que o programa de mentoria é fundamental para o início da carreira dos jovens que passam por lá. "Quando eles conseguem um emprego, ter um salário e benefícios, conseguem transformar a vida da família, não só a deles. É uma reação positiva em cadeia."

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Segundo ele, os casos de sucesso são um exemplo para outros jovens de que é possível melhorar a qualidade de vida com esforço, com trabalho, com dedicação. "Essa é a principal mensagem que o Jovem com Futuro dá." Maestrello diz que um ponto para quem vai dar mentoria é entender que a realidade desses jovens é completamente diferente da dos executivos. "A gente tem de passar a mensagem para o mentorado, mas sempre lembrando da realidade dele, tanto da família como da vizinhança, da comunidade, da escola."

Isso, diz ele, ajuda muito a não falar coisas que não são tangíveis ou possíveis de alcançar. A questão do Jovens com Futuro é a empregabilidade. "É para isso que a gente trabalha com eles. Para que consigam um emprego que pode mudar a realidade da família e da própria comunidade." Ryan é o exemplo disso. Hoje ele ocupa o cargo de especialista na gestão de contratos da Invent Software, que desenvolve soluções complementares para o Business One. Para o futuro, ele já tem um plano profissional inteiro traçado na cabeça, que envolve tanto a carreira em tecnologia quanto a paixão pela música.

Carlos Pereira Lopes, diretor de Tecnologia da Raccoon.Monks Foto: Diego Peterson

Com uma área de tecnologia que conta com cerca de 200 colaboradores, a Raccoon.Monks, onde muitos dos gestores começaram como estagiários, resolveu ir atrás da edutech Parças. A empresa de impacto social ajuda a solucionar a equação da falta de oportunidades para jovens em situação de vulnerabilidade e da escassez de profissionais de tecnologia. Para isso, atua na formação de novos desenvolvedores de periferias, favelas e egressos de medidas socioeducativas, como a Fundação Casa.

"É fato que o Brasil forma muito menos profissionais de tecnologia do que o mercado demanda e basicamente só existem dois caminhos", afirma o diretor Carlos Lopes, chefe de operações de tecnologia da Raccoon. "Ou contrata alguém que já sabe ou ensina. É um baita desafio, mas a Raccoon sempre foi uma empresa formadora. A gente recruta e forma talentos. É uma solução que tem funcionado muito bem."

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Na parceria com a Parças, os alunos de uma turma recém-formada foram entrevistados e três deles foram imediatamente contratados pela agência. "São talentos que tinham perfil técnico e fit com nossa cultura. Entraram com muito afinco, super empolgados", diz o diretor. A experiência deu tão certo, segundo ele, que agora a proposta ficou ainda mais certeira.

A Parças está formando uma nova leva de 13 pessoas com base nas ferramentas e soluções tecnológicas usadas pela agência. No final do curso, os 13 serão avaliados e encaixados em vagas de acordo com seu perfil e habilidades, podendo assumir cargos de desenvolvedor de software júnior ou em áreas de atuação como web, dados dentro do contexto de tecnologia e marketing digital.

"Agrega para eles e também para nós, até no lado pessoal", observa Lopes, contando que, até três anos atrás, a empresa estava acostumada a trazer jovens da Universidade Federal de São Carlos ou da USP, que na maioria das vezes tiveram oportunidades melhores. "Do Parças, vieram pessoas com outra história de vida e o nosso esforço é para acolher, é se preocupar com cada detalhe na interação dessas pessoas com a empresa, para que o ambiente seja seguro e receptivo para eles, desde o começo", relata. "Está sendo um baita aprendizado, um chacoalhão na galera."

Para Paulo Davi Freitas, um dos três ex-alunos da Parças que trabalha na agência, a realização tem sido grande. Aos 21 anos, casado e prestes a ter a primeira filha, ele acaba de ser efetivado, após 10 meses na empresa. "Eu sempre estudei em escola pública, vendia gelinho e verduras, ajudava meu padrasto na roça", conta o jovem de São Francisco, pequena cidade do interior paulista. Ele soube da iniciativa da Parças quando estava estudando na Fatec e decidiu mergulhar no mercado de TI.

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"Nunca imaginei que meu primeiro emprego seria numa empresa do porte da Raccoon", afirma o desenvolvedor. "Dava medo de ser demitido por ser minha primeira experiência em TI. Mas a agência me abraçou, me recepcionou muito bem. Tem gente que não tem dinheiro, mas tem um potencial incrível, aguardando só para mostrar seu valor."

De acordo com o último levantamento do IBGE, hoje há pelo menos o dobro de desempregados entre os que têm de 18 a 24 anos do que no restante da população ativa. São 22,8% os jovens à procura de trabalho, enquanto o índice nacional é de 11,1%.

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