O sentimento negativo que pode emergir da meditação mindfulness

Acredita-se que a atenção plena ofereça vários benefícios — mas também pode aumentar tendências egoístas e diminuir a probabilidade de você se sentir culpado por algo que tenha feito de errado; veja como se prevenir e tirar o máximo de benefício da técnica meditativa.

17 abr 2022 - 11h14
Mulher meditando
Mulher meditando
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Quer você seja um professor de escola, um funcionário de hospital, um programador do Google, um oficial da Marinha americana ou até mesmo um político do Reino Unido, você possivelmente foi incentivado a adotar a meditação mindfulness (atenção plena) por colegas e supervisores.

Até meu smartwatch me lembra regularmente de tirar um "minuto consciente". Nos EUA e no Reino Unido, a prática de atenção plena é muito difundida.

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Os resultados imediatos dessa forma popular de meditação são destinados a reduzir o estresse e o risco de burnout. Mas além destes benefícios, você encontra com frequência afirmações de que a meditação mindfulness pode melhorar sua personalidade.

Quando você aprende a viver o momento, dizem os defensores da tese, você encontra reservas ocultas de empatia e compaixão por aqueles ao seu redor. Isso é, sem dúvida, um bônus atraente para uma organização que espera aumentar a cooperação dentro de suas equipes.

As pesquisas científicas, no entanto, pintam um quadro mais complexo dos efeitos da atenção plena em nosso comportamento, com evidências emergentes de que, às vezes, pode aumentar as tendências egoístas das pessoas.

De acordo com um novo artigo, a meditação de atenção plena pode ser especialmente prejudicial quando magoamos outras pessoas. Ao reprimir nossos sentimentos de culpa, ao que parece, a técnica nos desencoraja a reparar nossos erros.

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"Cultivar a atenção plena pode distrair as pessoas de suas próprias transgressões e obrigações interpessoais, ocasionalmente relaxando a bússola moral", diz Andrew Hafenbrack, professor assistente de administração e organização da Universidade de Washington, nos EUA, que liderou o novo estudo.

Tais efeitos não devem nos desencorajar de meditar, enfatiza Hafenbrack, mas podem mudar quando e como escolhemos fazer isso. "Embora alguns vejam como uma panaceia, a meditação mindfulness é uma prática específica com efeitos psicológicos específicos", diz ele.

E precisamos ser um pouco mais... atentos a esses efeitos.

Calmo e insensível?

Há muitas formas de atenção plena, mas as técnicas mais comuns envolvem focar na respiração ou prestar bastante atenção às sensações do corpo.

Há boas evidências de que estas práticas podem ajudar as pessoas a lidar melhor com o estresse, mas alguns estudos nos últimos anos mostraram que também podem ter alguns efeitos inesperados e indesejados.

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No ano passado, por exemplo, pesquisadores da Universidade Estadual de Nova York sugeriram que a atenção plena pode exagerar as tendências egoístas das pessoas.

Se uma pessoa já é individualista, vai se tornar ainda menos propensa a ajudar os outros após a meditação.

O novo estudo de Hafenbrack analisou se nosso estado de espírito no momento da meditação e nosso contexto social podem influenciar seus efeitos em nosso comportamento.

Em geral, a prática mindfulness parece acalmar sentimentos desconfortáveis, diz ele, o que é incrivelmente útil se você se sentir sobrecarregado pela pressão no trabalho.

Mas muitas emoções negativas podem servir a um propósito útil, principalmente quando se trata de tomada de decisão moral. A culpa, por exemplo, pode nos motivar a pedir desculpas quando magoamos outra pessoa ou a tomar medidas reparadoras que possam desfazer parte do dano que causamos.

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Se a meditação mindfulness nos leva a ignorar essa emoção, ela poderia, portanto, nos impedir de corrigir nossos erros, suspeitava Hafenbrack.

Embora a 'meditação mindfulness' possa ser apresentada como uma solução rápida, é importante observar as nuances, dizem especialistas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para descobrir isso, ele desenvolveu uma série de oito experimentos, envolvendo uma amostra total de 1,4 mil pessoas, usando uma variedade de métodos.

Em um deles, os participantes foram solicitados a lembrar e escrever sobre uma situação que os fez se sentirem culpados.

Metade foi então orientada a praticar um exercício de atenção plena que direcionava seu foco para a respiração, enquanto os outros foram instruídos a permitir que suas mentes vagassem livremente.

Em seguida, os participantes responderam a um questionário que media seus sentimentos de culpa.

Eles também tiveram que imaginar que haviam recebido US$ 100. A tarefa deles era estimar quanto estariam dispostos a doar para a pessoa que haviam ofendido, como um presente surpresa de aniversário.

Como Hafenbrack suspeitava, os participantes que haviam praticado a meditação mindfulness reportaram menos remorso — e foram substancialmente menos generosos com a pessoa que ofenderam.

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Em média, eles estavam dispostos a doar apenas US$ 33,39, enquanto aqueles que simplesmente deixaram suas mentes vagarem se mostraram dispostos a doar US$ 40,70 — uma diferença de quase 20%.

Em outro experimento, Hafenbrack dividiu os participantes em três grupos.

Alguns praticaram a respiração consciente, enquanto outros foram instruídos a deixar suas mentes vagarem e um terceiro grupo navegou na web.

Os participantes foram então solicitados a escrever uma carta de desculpas a alguém que haviam ofendido, que dois juízes independentes avaliaram depois, de acordo com 1) se o indivíduo assumiu a responsabilidade por seus atos e 2) se ofereceu para compensar o erro. (Um pedido de desculpas sincero de alta qualidade incluiria ambos os elementos.)

Em conformidade com a hipótese de Hafenbrack, as pessoas que praticaram a atenção plena apresentaram desculpas menos sinceras do que aquelas em qualquer um dos grupos de controle.

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Desculpas sinceras são importantes, mas pesquisas sugerem que a atenção plena pode nos tornar menos propensos a reconhecer nossos erros
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Isso sugeriu novamente que a prática havia silenciado seus sentimentos de culpa e, como resultado, sua disposição de fazer as pazes. Os experimentos restantes indicam que isso é verdade em várias situações diferentes, incluindo tomadas de decisões de negócios que podem afetar a justiça social.

Os participantes de um experimento, por exemplo, tiveram que imaginar que eram CEOs de uma empresa química que lidava com materiais perigosos. Em seguida, foram convidados a declarar seu apoio a uma nova política ambiental que ajudaria a reduzir a poluição do ar.

Os participantes que haviam acabado de praticar a meditação mindfulness se mostraram muito menos propensos a apoiar a medida reparadora.

A pílula de Buda

É importante reconhecer que esses estudos analisaram os efeitos dos exercícios de atenção plena em contextos muito específicos, quando a culpa estava proeminente na mente dos participantes.

"Não devemos generalizar demais e concluir que a meditação mindfulness faz de você uma pessoa pior", diz Hafenbrack. Os resultados do estudo podem, no entanto, nos encorajar a ser um pouco mais cuidadosos quando aplicamos a prática.

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Devemos pensar duas vezes antes de usá-la após um desentendimento com um amigo ou colega, por exemplo, principalmente se você já sabe que estava errado.

"Se reduzirmos 'artificialmente' nossa culpa meditando sobre ela, podemos acabar com relacionamentos piores, ou até menos relacionamentos", adverte.

Miguel Farias, professor associado de psicologia experimental da Universidade de Coventry, no Reino Unido, diz que qualquer estudo que detalhe cuidadosa e precisamente os efeitos da atenção plena é bem-vindo.

"Eu, sem dúvida, acho que precisamos começar a olhar para as nuances."

No livro The Buddha Pill ("A Pílula de Buda", em tradução literal), escrito em parceria com Catherine Wikholm, ele descreve como as intervenções de atenção plena no Ocidente são frequentemente apresentadas como uma "solução rápida", ignorando grande parte da orientação ética que fazia parte da tradição religiosa original — o que pode ser importante para garantir que a prática produza as mudanças desejadas no comportamento das pessoas.

Em parceria com Ute Kreplin, da Universidade Massey, na Nova Zelândia, Farias analisou recentemente os estudos disponíveis sobre as consequências da meditação para o altruísmo e a compaixão, mas encontrou evidências limitadas de mudanças positivas significativas entre os indivíduos.

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"Os efeitos são muito mais fracos do que havia sido proposto."

Assim como Hafenbrack, ele suspeita que a prática ainda pode ser útil — mas se você vê os benefícios desejados pode depender de vários fatores, incluindo a personalidade, motivação e crenças de quem medita, diz ele.

"O contexto é muito importante."

'Meditação da bondade amorosa'

Pelo menos, a pesquisa de Hafenbrack sugere que meditadores casuais podem recorrer a outras técnicas contemplativas, além da respiração consciente e do escaneamento corporal, em momentos de conflito interpessoal.

Ele analisou uma técnica conhecida como 'meditação da bondade amorosa', por exemplo, que é inspirada na prática budista de Metta Bhavana.

A prática envolve contemplar as pessoas em sua vida — de amigos e familiares a conhecidos e estranhos — e cultivar bons desejos e sentimentos de carinho por eles.

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Em seu estudo sobre a culpa, Hafenbrack descobriu que — diferentemente da respiração consciente — a meditação da bondade amorosa aumentava a intenção das pessoas de reparar seus erros.

"Pode ajudar as pessoas a se sentirem menos mal e a focarem no momento presente, sem correr o risco de reduzir a disposição de reparar relacionamentos", diz ele.

Os seres humanos são seres complexos com muitas necessidades diferentes; é justo que a gente use várias técnicas para moldar nossas emoções e nosso comportamento.

Às vezes, isso envolve olhar para dentro, para fundamentar nosso pensamento em nossos corpos, e outras vezes precisamos olhar para fora e nos lembrar de nossas conexões essenciais com as pessoas ao nosso redor.

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Não há outra maneira de assumir a responsabilidade por nossos comportamentos e garantir que nossos relacionamentos continuem a florescer.

Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife.

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