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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

O quarto verso

Quarta, 28 de agosto de 2002, 16h19



Corria o Ano de Nosso Senhor de Mil Novecentos e Noventa e Dois. Inverno na Osvaldo Aranha, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Uruguai do Norte. Para Preguiça era mais uma daquelas noites aparentemente infindáveis, quando a
quantidade de álcool consumido evoca espíritos vindos do distante sei-lá-donde. Era a vez de William Blake.

Conversavam animados no canteiro central da avenida, encostados nas árvores, compartilhando o que ainda
restava da garrafa de gim, alheios ao rebuliço do povo à sua volta. Preguiça se perguntava como o vento gelado não fazia o poeta tremer, vestido apenas com um pijama de algodão cru e um gorro vermelho. Talvez a bebida o
esquentasse, talvez mortos não sintam frio, talvez. A sirene de uma viatura atrapalha por um momento sua discussão sobre os Provérbios do Inferno, mas os dedos de Preguiça brincam com a garrafa quadrada e o trazem de volta
à irrealidade. Estava feliz, e seu amigo Will lhe explicava agora a pronúncia do quarto verso de The Tyger, olhos de leitão voltados para algum lugar de sua mente.

Foi quando alguém o puxou de volta, respirou fundo, olhou, era um amigo, parecia assustado, Vamos sair daqui, Mas que fim levou o William Blake?, Preguiça quis saber e não se moveu. Cabação - o amigo - insistiu mais uma vez, arrastando-lhe pelo braço, mas Will já voltara e pedia a garrafa.

Ensaiando um sorriso bêbado, Preguiça acompanhou a corrida de Cabação em direção ao bar mais próximo, que fechava suas portas de ferro. Isso, resmungou, Deixem-nos sós, deixem-nos em paz, e o fantasma do visionário começou a falar sobre sua obra profética. America!, ele declamava, enquanto
Preguiça estalava a língua ao sorver o último gole do gim e começou a concordar com a afirmação de que Swedenborg tinha sido uma péssima influência na poética de Blake.

De repente, um grito, vários, um grande ruído e correrias, mas nada que Preguiça considerasse anormal. Afinal de contas, estava discutindo filosofia com um cadáver. Um grito mais perto, uma ordem - larga isso - e ele O
quê?, um cassetete e uma garrafa no chão, menos mal que estava vazia, mas era bonita e ele queria guardar. Um policial o olhava com medo, e gritava Anda! enquanto lhe batia com o cassetete nos braços. Contrariando sua natureza,
Preguiça obedeceu, e veio outro, tentou ler seu nome mas não estava lá onde deveria. Este não o olhava com medo, mas com raiva, e gritava Corre, vagabundo! enquanto lhe batia nas costas. Não sou vagabundo, sou filósofo!, Preguiça balbuciou, e viu que William Blake desaparecera. O policial lhe golpeava na cabeça sem parar, mas não sentia dor, estava feliz. Até que escutou pela última vez naquela noite a voz do poeta, sussurrando em um português cheio de sotaque: Ele tá te batendo na cabeça, rapá. Corre ou tu
vai ficar burro!

Na mesma hora Preguiça saiu em disparada, até chegar a um lugar distante da confusão. Sorriu, no fim das contas, e começou a gargalhar em êxtase. Eu falei com William Blake! gritava sem parar. Passou a mão na cabeça, estava molhada, o que seria?, cheirou e nada, na língua parecia metálico,
procurou a luz sob a marquise de um prédio, e foi então que viu o sangue e teve medo. Terminou a noite sentado na sarjeta, segurando a cabeça com as mãos, com medo que seu cérebro escorresse pelo buraco que deveria estar escondido em algum lugar no meio de seus cabelos empapados.

Na tarde seguinte, quando do efeito do gim só lhe restava uma tremedeira incontrolável nas mãos, entendeu porque sua mãe vivia repetindo 'esse menino dá muita dor de cabeça'. Foi quando William Blake surgiu em seu quarto, sentou no canto da cama e declarou, com voz de elevador:
- É isso aí, véi. No quarto verso, o simmetry está rimando com o eye do terceiro.

Quando abriu os olhos, só enxergou uma mosca no teto.

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