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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

A próstata em debate intercontinental

Quarta, 19 de junho de 2002, 12h38



(As peripécias de Crumbo Parsifal em sua peregrinação jubilar, parte 7)

Ainda estava em território saudita quando Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara me convenceu de que entrar no Iêmen por via terrestre não seria uma boa idéia. Estacionamos Cosmo, nosso ônibus roxo, em uma área qualquer do deserto, estendemos nossos tapetes e ficamos observando a tempestade de areia levá-lo embora. Quando só restava o estepe, demos as costas à Meca e esquecemos de fazer nossas abluções. Em poucos minutos já estávamos dentro do avião russo das Linhas Aéreas de Omã, e Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara me traduzia a fala do piloto, que até então me soava como alsalamaleikumarakarakmohammad. Estávamos prestes a pousar no aeroporto de Sanaa, a capital iemenita.

Quando coloquei os pés no último degrau da escada, fui rodeado por uns sujeitos vestidos com camisolões azuis e ak-47s dependurados nos ombros. Seqüestro, Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara me revelou. Haxinxins?, eu perguntei. Não, apenas Qatifes. Mesmo assim, resolvi seguir caminho. Não era desta vez que eu conheceria Haroun Al-Raschid ou Hassan Ibn Al-Sabah, o Velho da Montanha. A comunidade dos Qatifes também tem seus atrativos, a começar pelas quantidades incontáveis de qat - a planta do Olho Seco - e de beduínas lascivas com os corpos inteiramente pintados com henna. Mas a atração principal é seu líder, Edouard Ibn Pinheaux Al-Morseau, o Ruivo da Caverna.

Depois de algumas horas viajando em uma kombi chamada Winnetou, os Qatifes retiram a venda de meus olhos e percebo que estou dentro d'A Caverna. Eu e Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara somos desamarrados e levados aos empurrões até uma das grutas internas, cuja entrada está encoberta por um tecido com padronagem semelhante a de nossos tapetes. Encimando a entrada, uma inscrição que pode ser lida até pelo meu conhecimento rudimentar de árabe:


NADA É PERMITIDO.
TUDO É VERDADEIRO.
VERDADEIRO É PERMITIDO.
TUDO É NADA.

Somos recebidos no interior da gruta por um cheiro adocicado que gruda em nossas túnicas. Desvio a atenção para um dos cantos, onde enxergo, afundado em almofadas, Edouard Ibn Pinheaux Al-Morseau. Está rodeado de garotas nuas, com os corpos pintados de vermelho. Não parecem árabes, e sim orientais. Todas usam colares feitos de pequenos crânios. Talvez não sejam orientais, mas índias da tribo dos encolhedores de cabeças. Uma delas, a menor e mais bonita, está sentada no colo do Ruivo da Caverna, acariciando sua enorme barriga tigrada. Ele percebe nossa presença, sorri e entrega um rolinho para um de nossos captores. É um pergaminho muito delicado, provavelmente feito de intestino de ovelha. Recebemos instruções de não abri-lo antes de estarmos novamente em Sanaa. Coloco a coisa no meu bolso enquanto somos empurrados para fora da gruta. Gordo de bosta, nem pra dividir uma vermelhinha gostosa com as visitas.

Antes que possamos pedir para explorar melhor as cavernas e as beduínas pintadas de henna, somos jogados de volta ao interior de Winnetou, vendados, amordaçados e amarrados. A viagem de volta à capital do Iêmen é um saco, principalmente por eu estar com uma forte coceira perto do rêgo. Os Qatifes nos abandonam em um mercado ao ar livre e desaparecem nas vielas da cidade. Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara, morto de fome como sempre, se dirige a um dos mercadores para comprar comida. Antes, resmunga Ei, precisamos procurar nosso ônibus, deve estar aqui em algum lugar. Dou de ombros e, aliviado, finalmente dou minha coçadinha no rêgo. Descubro que o que estava me cutucando era o maldito pergaminho do Guru dos Qatifes. Rompo o lacre, desenrolo e passo os olhos no conteúdo:

"AS DEZ VERDADES ABSOLUTAS
de acordo com a encarnação passada de
EDOUARD IBN PINHEAUX AL-MORSEAU

1. Nenhum sistema é completo, pois não é possível explicá-lo completamente partindo dele mesmo. (Ex. Para explicar o universo seria necessário um computador fora do universo. Isso é provado pelo teorema de Gödel).

2. Não existe nenhuma verdade. Esta afirmação é falsa. Paradoxos transcendem paradoxos. (Ex. A única maneira de resolver uma questão é desistir da pergunta. Por isso alguns sistemas de crenças afirmam que quando a mente pára a onisciência é obtida).

3. Todos os conceitos são válidos (apenas e somente) dentro de seus sistemas de crenças. Um sistema de crenças é um conjunto de conceitos que se complementam ou se justificam. (Ex. Uma religião neolítica satisfaz a necessidade do povo neolítico. O Cristianismo funciona para os cristãos. A ciência satisfaz a tecnologia. A matemática serve ao contador. Todos carregam coerência interna, embora nenhum desses sistemas carregue o que se chamaria, caso tivesse existência possível, de verdade).

4. Todos os critérios, julgamentos, arbitrariedades e morais são baseados em sistemas de crenças específicos, e portanto são circunstanciais e não universais. (Ex. As regras de um jogo de futebol dificilmente se aplicariam ao parlamento. A moralidade cristã dificilmente seria aplicada a marcianos, intelectuais ou tartarugas).

5. Abandonar quaisquer sistemas de crenças, embora desejável, é impossível. Existem programas compulsórios tanto biológicos quanto ambientais. O livre-arbítrio é paradoxal. Quem abandona quaisquer referências 'externas' se torna um psicótico, e está condenado a não interagir. O poder verdadeiro vem da liberdade relativa que o indivíduo obtém dentro de seu ambiente (semântico, social, etc).

6. Cada elemento - da partícula à galáxia, passando pelos homens - carrega sua peculiaridade intransferível. (A maioria dos sistemas de crenças chamam de Amor o que cria a interação entre as partes. Ex. "A separação é uma ilusão criada pelo Amor ao Amor", etc).

7. A consciência é o foco da atenção. 'Ampliar' a consciência é alterar este foco. Graus podem ser assinalados, e esses níveis podem ser descritos por sistemas de crenças. (Ex. os oito circuitos, os chacras, as sephiroths da cabala.) Existem técnicas para alterar este foco. Alguns sistemas de crenças chamados 'Religiões' tinham originalmente o objetivo de promover estas técnicas. (Ex. Yoga, drogas, privação sensorial, choque elétrico, sexo, ritual, etc. recomendadas pelas diferentes religiões.)

8. Nenhuma ação é ilícita, porém todo ato tem seu momento ideal. A consciência, estando capaz de transitar por diversos focos, experimentando diversas realidades, pode determinar que ato e que momento devem ser utilizados no sacramento da interação com o mundo. (Ex. A razão é apenas o software básico linear que permite examinar e decidir ações simples se não contaminada por fé, i.e, a prisão a um sistema de crenças que se considera auto-justificável.)

9. Já existem algumas pessoas ou seres que alcançaram esses estados e estabeleceram uma rede de símbolos para indicar o caminho. Não faz sentido falar qualquer coisa sobre essas pessoas visto que estão além do tempo e do espaço, e com certeza além dos conceitos usados pelos homens. Essas pessoas não precisam ser identificadas ou rotuladas - devemos prestar atenção somente aos sinais que deixaram. Esse conjunto de sinais é chamado de darma pelos budistas.

10. O mundo é cheio de detalhes que nos passam desapercebidos, mas nem por isso ficamos irritados com nossa falta de atenção. A Grande Obra é realizada fora do mundo das imagens, símbolos e categorias - ela se faz no "vazio", o mundo real."

Humpf. Blá blá blá, blá blá, blá. A mim me parece coisa de tobeiro. Rasgo o pergaminho em pedaços minúsculos enquanto Hadji Alef Omar Ibn Hadji Dawud Al-Gossara caminha a meu lado, devorando um joelho de cabrito. Dou uma rápida olhada para trás e vejo um cachorro sarnento nos seguindo e engolindo todos os pedaços do pergaminho. Bicho burro. Volto a olhar para a frente. Estou tão absorto na procura de Cosmo que só percebo que o cachorro levantou vôo quando seu corpo desaba à minha frente, abatido por um dos iemenitas de camisolão azul. Tomo cuidado para não tropeçar.

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