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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Onde está sua mente?

Quarta, 29 de maio de 2002, 11h46



A maioria dos leitores, ou seja, vocês, parece preferir crônicas a contos. Que curioso. Melhor pra mim, porque são infinitamente mais fáceis de escrever. Melhor para vocês, porque são infinitamente mais fáceis de ler. É, estou me deixando levar pelo demônio furibundo do comodismo. Na verdade, isso é um pouco triste, mas não vou desenvolver este assunto hoje. Tenho uma crônica pela frente:

2001 é um filme meio chato, mas gosto dele; tem seus momentos. A melhor parte é uma fala do computador HAL 9000: Dave, minha mente está indo. Posso sentir. Estou com medo. É uma excelente frase, principalmente no contexto em que aparece no filme. E puxa, boas frases são quase tudo na vida. Sim, na verdade são três frases, mas dane-se. É uma boa fala, que seja. Repito isso algumas vezes por semana, mas só quando realmente quero dizer o que essas palavras significam. Palavras. Talvez sejam a mais importante invenção humana. Talvez nada: certamente o são. Ok, sem digressões. Certo dia, quando eu ainda não tinha decidido viver sem televisão, eu estava dando uma olhada de resbico nos canais e comecei a assistir um documentário francês no GNT. Era sobre uma cidadezinha belga onde fica a maior instituição para doentes mentais do país. É um grande hospital para onde acabam indo a maioria dos psicóticos crônicos de lá. O interessante é que eles não ficam completamente trancafiados, e a população da cidade se acostumou a conviver com os doentes, que estão por todos os cantos, de bares a igrejas. Mais legal ainda é um programa de famílias adotivas mantido pelo hospital. Funciona assim: alguns internos se transferem para as casas de pessoas que manifestam o desejo de recebê-las. Viram parte da família, têm quartos para si, essas coisas. Existem famílias que adotaram até três internos. Fiquei positivamente apavorado. A maioria desses pacientes foi rejeitado pelas famílias de origem. Conviver com um psicótico não é muito fácil, mesmo que ele seja do seu próprio sangue. Esse pessoal é pária de si mesmo, é complicado e imprevisível, mas nessa cidade belga existe gente que os acolhe dentro da própria casa por vontade própria. Meus caros, isso renova minhas esperanças capengas na maldita espécie humana. Que gente legal, diacho.

O documentário destaca alguns dos pacientes, e o que mais me chamou a atenção foi um tal de Phillipe. Um cara jovem, não mais de trinta e poucos anos, o rosto ainda não desfigurado pelo uso contínuo de medicações. Suponho que vocês saiba que antipsicóticos em geral costumam inchar seus usuários. É o efeito colateral menos desagradável, e Phillipe ainda parecia imune - por pouco tempo, claro. Ele era aparentemente "normal" até que foi abandonado pela mulher, que arrematou levando os dois filhos. Aí o neguinho despirocou. Psicose é isso aí: se você entra em surto preto uma vez, Matias, nunca mais volta a ser o que era antes. O jeune Phillipe, grande fã de Elvis, virou um esquizo-paranóide de compêndio de psicopatologia. O olhar fixo voltado para dentro, quase nenhuma emoção no rosto ou na voz. Ele ouvia vozes que o mandavam se suicidar, mas isso parou com os remédios. Ele não falava com ninguém, mas isso melhorou quando foi adotado por uma família da cidade. O Phillipe está lá, no mundo dele. O divórcio deu direito a uma visita de duas horas dos filhos a cada quinze dias. Ele fica coberto com um quase sorriso, que no caso de pessoas com sua patologia é um indício de alegria transbordante. Ele também fica alegre quando cuida de bodes. Bodes são animais muito simpáticos, é verdade. Grande garoto, o Phillipe. Gostei dele.

Noutro pedaço do documentário o narrador diz que alguns psiquiatras afirmam que uma boa parte dos psicóticos é formada de pessoas inteligentes e sensíveis demais para conseguir funcionar na sociedade. Eles não conseguem se iludir, como a maioria das pessoas faz quando a vida exige, e isso acaba esgrumilhando sua razão. Por um lado isso faz muito sentido, por outro é meio romântico demais. O certo que é a personalidade paranóide não é totalmente delirante. O paranóico deve ser realmente um sujeito mais sensível. Percebe as sutilezas de intenções e discursos com mais força do que a maioria das pessoas, é mais receptivos a comunicações subliminares e por aí vai. O problema é que a coisa acaba crescendo tanto que o vivente perde o controle e começa a perceber coisas que não existem. É. Esse tipo de coisa me faz pensar que o que chamamos de loucura é por vezes um excesso de sanidade, mas isso soa meio hippie. Eu não fumo maconha e raspei a cabeleira há cinco anos. A mensagem aqui, caso vocês façam questão de uma (o que muito me deprimiria, mas a vida me deixou preparado para qualquer coisa), é: Cuidem de seus cérebros, eles são frágeis. Caso contrário, um dia você pode acordar, esfregar os olhos, caminhar até o banheiro, parar na frente do espelho, olhar bem nos seus olhos e repetir em silêncio, cheio de razão: Minha mente está indo. Posso sentir. Estou com medo. Acontece o tempo todo. Tomem cuidado.

E, por favor, assistam menos televisão.

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