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    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Proibida a entrada de pessoas estranhas

Quarta, 27 de março de 2002, 17h14



Como em todos os outros dias úteis de sua vida, Amauri chega cedo no trabalho e faz o que lhe mandam fazer. Nesta quarta-feira, antes de cumprir suas funções de atendente de balcão, recebe do gerente a incumbência de colocar um cartaz em frente à loja. Não é uma tarefa complicada, e em menos de dois minutos está de volta ao balcão do fundo da loja, esperando que algum cliente lhe venha perguntar o preço das fitas de vídeo ou dos fones de ouvido dobráveis. Um pouco antes da hora do almoço, percebe uma certa movimentação na frente da loja e deixa seu posto para descobrir o que está acontecendo.

Encontra umas quinze pessoas reunidas em semi-círculo ao redor do cartaz que colocara no início do expediente. Olham fixamente para seu texto, que anuncia os novos serviços fotográficos da loja. Amauri se coloca ao lado do cartaz e pergunta o que estão fazendo ali. O grupo se entreolha, alguns trocam cutucões, outros sorriem, mas nenhum responde ou faz menção de ir embora. Mais pessoas se unem ao grupo, incluindo um mendigo que chega se arrastando com suas pernas atrofiadas, lustrando a calçada com sua barriga. Segurando com força a barra das calças de Amauri, pergunta a que horas acontecerá o que está prometido no cartaz. Quando vai responder, Amauri escuta a voz do gerente vindo de trás de si, dizendo Não vai acontecer nada. Circulando, pessoal.

Ruídos de insatisfação surgem em meio ao grupo, que agora já pode ser considerado uma pequena multidão. Um homem idoso, com um chapéu panamá e uma maleta de vime, começa a gritar com o gerente enquanto cutuca seu peito com uma bengala. A revelação, ele quer saber, qual o horário da revelação. Assim que o gerente começa a repetir pela segunda vez a leitura em voz alta do cartaz, dizendo que Aqui Revelação em Uma Hora quer dizer apenas que a loja agora tem um laboratório fotográfico expresso, a primeira pedra atinge uma das vitrines. A pequena multidão, já metarmofoseada em uma turba ensandecida, parece prestes a destruir todos os vidros à sua frente quando o senhor de chapéu panamá abre a maleta de vime e retira um cartaz que diz Jesus é Extraterrestre e Virá te Buscar.

Já são mais de duzentas pessoas revolvendo-se na frente da loja. Algumas delas, não mais de onze, separaram-se do grupo que está em frente ao cartaz e estão ao redor do profeta do Jesus Extraterrestre, que subiu na maleta de vime e está denunciando as blasfêmias do cartaz vizinho e de seus seguidores. Um grupo de punks atira laranjas podres para todos os lados enquanto vociferam contra todo tipo de religião. Uma delas atinge a testa de Amauri, que está junto aos outros funcionários tentando em vão baixar as portas de metal para fechar a loja. Gritos de Revelação já! Revelação já! Revelação já! reverberam por toda a rua. O gerente tenta retirar o cartaz, mas assim que faz menção de retirá-lo é puxado pela horda, que o agarra por todos os lados e começa a linchá-lo.

Policiais da tropa de choque abrem caminho com dificuldade e golpes de cassetetes. A intensidade dos urros da massa impediram que se ouvisse as sirenes. Um dos policiais, desviando do corpo do gerente, se aproxima de Amauri, o funcionário que está mais próximo do cartaz. Pergunta se a loja estava prometendo aquilo mesmo aos passantes. Amauri não consegue falar nada, nem ao menos fechar a boca ou piscar os olhos. O policial retira as algemas do cinto e dá voz de prisão a Amauri, que lhe dá um chute no joelho e corre para o interior da loja. Assim que enxerga a porta da salinha onde se guarda o material de limpeza, entra tropeçando em baldes e vassouras. O barulho no interior da loja aumenta cada vez mais. O mar de pessoas, juntamente com os policiais, parece estar destroçando tudo que está dentro da loja. Os gritos de Revelação já! Revelação já! Revelação já! ficam mais altos com a ajuda dos megafones da polícia. Amauri tranca a porta, senta no chão e fecha os olhos, no mesmo segundo em que o gás lacrimogêneo começa a entrar por todas as frestas.

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