» Página inicial

    DANIEL PELLIZZARI
mojo333@terra.com.br

Buraco

Quarta, 06 de março de 2002, 14h36



Só mais meia horinha, pensou Moacir quando o despertador anunciou a hora de acordar. Só mais meia horinha, por favor. Abriu um dos olhos quando sua mulher resmungou um Levanta que já está na hora. Devagar foi sentando na cama, se espreguiçando e coçando as costas. Enfiou os pés nos chinelos e seguiu tropeçando até o banheiro. Jogou uma água no rosto e começou a escovar os dentes com cuidado, lembrando da última vez em tinha ido ao dentista. Quando foi dar bom-dia para seu rosto no espelho, percebeu algo estranho: estava com um buraco no meio da testa.

Era um buraco perfeitamente redondo, do tamanho de uma moeda de dez centavos. Não havia sangue nem feridas: o buraco simplesmente estava ali, impassível, como se tivesse sempre feito parte de sua cabeça. Parecia não ter fundo. Resistiu à vontade de enfiar o dedo ali dentro e ficou imóvel durante alguns segundos, apenas olhando seu reflexo no espelho. Piscou os olhos repetidas vezes, mas o buraco não desaparecia. Correu de volta para o quarto e sacudiu a mulher. Ela acordou rápido, um tanto assustada, e coçou os olhos. Olha isso, ele repetiu apontando para o buraco, olha só isso aqui.

Sem dizer nada, ela tateou em volta do buraco, franzindo o cenho. Quando terminou, respirou fundo e baixou a cabeça. Moacir sentou na cama ao seu lado, resmungando Mas de onde saiu isso, meu deus. Ela não deu seu palpite. Permaneceram quietos durante um bom tempo, até que ela perguntou O que você disse? e ele respondeu Nada, ora. Mas eu escutei alguma coisa, ela afirmou, e aproximou o ouvido do buraco.

- Moacir, tem alguém falando aí dentro.

Antes que sua mulher pudesse entender as palavras que saíam do buraco, Moacir levantou da cama e correu para a sala. Pegou o telefone e digitou com pressa o telefone do irmão médico. Ele era um doutor, um especialista, deveria ter alguma resposta para aquilo. Mal conseguiu ouvir o Alô do outro lado da linha, de tão alto que a voz de dentro de seu buraco começou a tagarelar. Seu irmão ainda falou Moacir? Moacir? algumas vezes antes de desligar e deixar Moacir e a voz falando sozinhos. Com as mãos na cabeça, desabou na poltrona e tentou imaginar uma solução. Sua mulher ajoelhou-se ao seu lado e perguntou O quê?, mesmo sem que ele tivesse dito nada. A voz, cada vez mais alta, continuava a jorrar do buraco e a reverberar dentro de sua caixa craniana, impedindo qualquer possibilidade de pensamento coerente.

De repente Moacir levantou e correu para a cozinha. Sua mulher foi atrás. Remexeram juntos as gavetas da cozinha até encontrarem algo que parecesse. Mas uma rolha, Moacir? a mulher hesitou, e ele com medo de perder os próprios pensamentos trincou os dentes e grunhiu um Enfia isso de uma vez que eu não agüento mais. E assim foi: com método e delicadeza, ela encaixou aos poucos a rolha no buraco da testa do marido até que do buraco só restou o contorno recheado de cortiça. Tiro e queda. Na mesma hora cessou a barulheira, as coisas ficaram mais claras e Moacir conseguiu novamente pensar sem ser interrompido por si mesmo. Abraçado na esposa, caminhou até o carro e foi para o trabalho, onde todos lhe deram bom-dia e não pareciam perceber a cortiça entre suas sobrancelhas.

No dia seguinte, Moacir acordou com um buraco no lado esquerdo do peito. Era um buraco perfeitamente redondo, do tamanho de uma moeda de dez centavos. Não havia sangue nem feridas: o buraco simplesmente estava ali, impassível, como se tivesse sempre feito parte de seu peito.

Leia a crônica anterior

Veja as notícias »


outros canais
  • Exclusivo!
    Televisão, moda, astros e babados
  • Notícias
    Tudo o que acontece no Brasil e no mundo
  • Esportes
    Notícias, fotos e cobertura de jogos
  • Revistas
    Para todas as idades e gostos
  • Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks, S.A. Todos os direitos reservados. All rights reserved.