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    DANIEL PELIZZARI
mojo333@terra.com.br

Nós que não somos como os outros

Quarta, 20 de fevereiro de 2002, 15h37



I - Julia Pastrana

Quente, o dia em que morri. Pela quantidade de pessoas ao redor de meu cadáver, ainda sou amada. Foi o que eu disse, antes de morrer: Fui feliz e amada. O Sr. Lent, meu gentil marido, conversa no canto da sala com um homem de sotaque duro. Meu filho nasceu morto. Antes de o levarem embora me deixaram vê-lo e percebi que, como eu, era uma pessoa interessante. Eu poderia fazer roupas para ele. Talvez o ensinaria a dançar. Viajaríamos juntos pelo mundo e seríamos vistos por todo tipo de gente, e provavelmente conheceríamos mais pessoas interessantes. Eu era A Mulher Mais Interessante do Mundo.

Na beira da cama em que estou morta, vejo um homem muito branco e gordo, que carrega um pequeno cão embaixo do braço direito. Ele está nu. Ao contrário de mim, ele não tem pêlo algum, e mesmo assim sua sem parar. Seu corpo todo brilha, parecendo coberto de gordura. Também me parece interessante, com sua enorme pança composta de dobras de pele sobrepostas. Presto atenção no caminho que o suor faz em seus seios pendentes, com mamilos roxos e redondos. Apenas eu olho para o homem, que passa um longo tempo suando em frente à cama. Percebo agora que ele não tem um dos olhos.

O homem larga seu cão no piso do quarto e logo surgem crianças de todos os lados. Nenhuma delas é interessante. Meu filho, o que nasceu morto, era peludo como eu. As crianças brincam com o cachorrinho do homem gordo, que continua em pé em cima de uma poça de suor grosso. De repente o cachorro chega perto demais da cama adornada por meu cadáver, e as crianças finalmente me enxergam. Todas, menos uma, gritam e saem correndo. Pobrezinhas. Gente morta deve dar medo. A que ficou no quarto se aproxima devagar de mim, até ficar ao lado de minha cabeça. Quase abro os olhos e desmorro, mas ao contrário do que esperava não ganho beijo algum. O garotinho puxa com força uma das minhas costeletas e sai correndo do quarto com um tufo de meus pêlos nas mãos.

O homem gordo agora sorri e me estende os braços. Caminho com ele em direção à porta, enquanto olho para trás e vejo que o Sr. Lent e o homem do sotaque estranho apontam para meu corpo de uma maneira que não consigo entender. Ainda há muitas pessoas ao redor da cama. Sempre gostei de ser vista e amada, mas existe alguma coisa no olhar dessas pessoas que me incomoda muito. Não era o mesmo olhar das crianças para o cachorrinho. Tão bonito. Meu filho era bonito. Como eu. Quando passo pela porta encontro Rab, o anão escocês, recolhendo dinheiro de quem entra. Pergunto ao homem gordo para onde estamos indo, ele pisca o único olho que lhe resta e não diz nada. Fico feliz em deixar meu corpo para trás. Ele agora será enterrado e desaparecerá. Nunca mais será olhado daquele jeito. Talvez eu não tenha sido amada pelo que fui.

Cantarolo uma canção de amor em espanhol, pego uma das mãos rechonchudas e úmidas do homem gordo, sorrio e pergunto se posso renascer como um cão. Sim, é este o meu desejo. Renascer como um cão: ou isso, ou o nada.

JULIA PASTRANA (1834-1860), conhecida como "A Mulher-Macaco", foi uma pequenina índia mexicana cujo corpo era inteiramente coberto de pêlos grossos e sedosos. Seu rosto possuía proporções simiescas, suas gengivas eram hipertrofiadas e possuía fileiras duplas de dentes pontiagudos. Inteligente e curiosa, falava várias línguas e adorava livros. Era exibida por toda a Europa por seu marido-explorador Theodore Lent, em espetáculos nos quais cantava com sua voz mezzo-soprano e dançava usando as roupas típicas que ela mesmo costurava. Morreu dias após o difícil parto de um bebê natimorto que carregava o mesmo problema genético. Após sua morte, seu corpo e o do bebê foram mumificados por Lent, que continuou exibindo-os até enlouquecer e morrer em um sanatório. Depois disso, as múmias de Julia Pastrana e de seu filho sumiram e reapareceram várias vezes, em diversos lugares diferentes. Sua localização atual é incerta.

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