Brasileiros vão à Bolívia para realizar sonho do diploma médico

Ítalo Milhomem
Direto de Santa Cruz de la Sierra

Técnica em enfermagem, santista Mariana espera retornar ao Brasil com o diploma de medicina
Crédito: Arquivo pessoal

  Todos os anos, cerca de 2,5 mil estudantes brasileiros vão a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, cursar medicina. Para conhecer a realidade desses alunos, o Terra foi à cidade acompanhar a rotina de quem se aventura no país vizinho carregando incertezas e medos, mas, acima de tudo, a esperança em uma realidade diferente, com uma carreira promissora após a formatura.

  Já na viagem para Santa Cruz de la Sierra se nota: a maioria no avião é formada por jovens brasileiros. Sem conseguirem passar em universidades públicas do País ou sem condições financeiras para pagarem cursos como o de medicina em instituições privadas, eles acabam perseguindo o sonho onde não precisam passar pelo pedágio do vestibular ou do Enem e ainda têm custos bem menores - na cidade, a mensalidade sai, em média, menos de US$ 200, algo bem abaixo do cobrado em faculdades particulares no Brasil.

  O voo, que partiu às 23h35 de Campo Grande e durou cerca de duas horas, deixou em solo boliviano a estudante de medicina Mariana Biasi, 27 anos. Aflita, ela aguardava na longa fila de desembarque para passar pela imigración do aeroporto de Viru Viru. Nascida em Santos e criada em Praia Grande, no litoral paulista, a aluna do 4º semestre da Universidade Franz Tamayo (Unifranz) estava preocupada com a prova que teria em algumas horas - e, especialmente, com a falta de tempo para revisar o conteúdo.

  Técnica em enfermagem, profissão que desempenhou por quatro anos até se mudar para a Bolívia, Mariana espera retornar ao Brasil formada para revalidar o diploma e iniciar uma "bem-remunerada carreira". "Mas não é só uma questão financeira, é uma realização pessoal me formar em medicina", afirma.

Apenas 14% dos estudantes estrangeiros da Ucebol chegam a se formar, alerta Gideão (à direita)
Crédito: Arquivo pessoal

  Para Gideão Mosa Neves, 26 anos, salário também não é o principal incentivo. O jovem saiu da pequena cidade de Itaquiraí, no interior do Mato Grosso do Sul, preocupado mais com a "questão humanitária" da profissão do que "com o salário que possa receber". Apesar de existirem três universidades com cursos de medicina no Estado - a Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a Federal da Grande Dourados (UFGD) e a Anhanguera Uniderp, particular, ele acabou escolhendo se profissionalizar na Universidade Cristiana da Bolívia (Ucebol), onde cursa o terceiro ano. "Estou aqui como muitos que tentam passar no vestibular nas universidades públicas e não têm dinheiro para pagar uma particular. Se tivesse condições, é claro, ficaria no Brasil", garante. "Poderia ter ido para Paraguai, para a Argentina, mas já tinha colegas que estudavam aqui e me orientaram. E a Bolívia já tem um histórico em relação aos cursos de medicina".

Dificuldades de adaptação
  Assim como Mariana, o baiano Sávio Avelino Silva, 28 anos, também foi à Santa Cruz carregando na mala um diploma. Fisioterapeuta, conseguiu aproveitar 13 disciplinas no novo curso, mas encontrou dificuldades na adaptação. "É muito diferente! Tem o idioma, a organização. É um choque visual! Você vê um alemão vestido como caipira e de repente você encontra uma cholita (como são conhecidas as mulheres que geralmente se vestem com roupas típicas). É uma diversidade cultural maior que no nosso País", relata.

  Com tantas diferenças, muitos brasileiros acabam abandonando o curso logo no começo, mesmo com o apoio de alguns professores. "A troca de ambiente favorece a saudade. Uns sentem a falta dos pais, dos amigos, choram. Nós tentamos ajudar, mas muitos desistem e voltam para casa nos primeiros semestres", reforça a docente Trinidad Mujica.

  Foi o que ocorreu com boa parte dos colegas de Gideão. "Fiz um estudo na disciplina de metodologia científica e apenas 14% dos estudantes da Ucebol chegam a se formar. Metade dos desistentes para entre o primeiro e o segundo semestre por não se adaptar à Bolívia. Depois deste período, a maioria desiste por questões financeiras", explica o sul-mato-grossense. "Nossa

dificuldade é a cultura, a língua. Mas você se adapta. Eu me considero privilegiado porque a grande maioria dos estudantes que entrou comigo já desistiu. Quase 70%!".

  Adaptar-se, no entanto, não significa desistir de voltar ao Brasil. Savio, por exemplo, já se casou com uma boliviana e teve uma filha, hoje com pouco mais de 10 meses. Mas não se esquece do País. "A previsão era retornar logo por causa da qualidade de vida, da questão salarial, do reconhecimento. Aqui um recém-formado ganha uns US$ 400 na rede pública. Com um pouco mais, cerca de US$ 1 mil, você consegue viver bem. Mas a intenção ainda é voltar", diz.

  Para sustentar a família, Sávio conta com ajuda financeira dos pais, mas garante que não passa dificuldades. "Eles ainda me mandam dinheiro de Salvador, e minha esposa trabalha dando aulas de inglês para ajudar a manter a casa", conta o baiano, que mora em um apartamento de dois quartos, "sem luxo, mas com uma suíte", que custa cerca de US$ 500 por mês.

Sávio não desiste de voltar, mas já se casou e teve uma filha na Bolívia
Crédito: Arquivo pessoal

Problema de comunicação
  Para o professor de anatomia da Ucebol, Juan José Chirapa, o principal problema no relacionamento com os brasileiros é o idioma. "A única solução é usarmos métodos didáticos para melhor sermos compreendidos. Alguns professores são mais legais e falam um pouco de 'portunhol' para ajudar em algumas situações. Outros são mais rigorosos porque se especializaram no Brasil e os professores lá só lecionavam em português", avalia. "Quando se vai estudar fora tem que se adequar às normas deste novo país, além do mais, os livros estão todos em espanhol. Nós, professores, pedimos que os alunos façam cursos extras de espanhol para não prejudicar a turma".

Marketing boliviano
  Mas, pelo menos na Ucebol, a ideia é atrair cada vez mais brasileiros. A universidade oferece até uma bolsa para alunos que levarem amigos para estudar medicina na Bolívia - a Beca Promotora concede 10% de desconto por estudante que se matricule. Gideão, por exemplo, já levou mais de 12 e conseguiu pagar um semestre e ter 20% de abatimento em outros seis meses. Mas ele faz um alerta: "É claro que explicamos como funciona estudar e viver na Bolívia, as dificuldades, as vantagens. Não adianta iludir a pessoa por conta do desconto e perder o amigo depois".

Documentação
  Conforme o Consulado Geral do Brasil em Santa Cruz de la Sierra, o número de estudantes que desembarca na cidade para cursar medicina em uma das cinco universidades privadas oscila de acordo com a alta do dólar, "fator determinante no custo de manutenção na Bolívia". Contudo, de acordo com o coordenador do curso da Udabol, Marco Antonio Quiroga Sanches, a burocracia para se obter os documentos também influencia. "Eles (alunos) precisam do registro de nascimento, histórico escolar do ensino médio, carta de solvência, que afirma que o estudante terá recursos para se manter no país durante os estudos, tudo com selo do Ministério das Relações Exteriores, do Consulado Boliviano no Brasil, com duas cópias autenticadas, além de visto e fotos".

  O Visto Temporário Mercosul, pedido diretamente ao órgão migratório boliviano, é o mais solicitado pelos brasileiros. O documento libera a residência por dois anos para estudos e trabalho, sendo prorrogável e com possibilidade de se tornar permanente. Já o visto de estudante é valido por apenas um ano. É igualmente prorrogável, mas proíbe qualquer atividade remunerada.

  Com tanto documento, muitos acabam extrapolando o orçamento. "Quando chegam aqui e têm problemas com documentação, no final do semestre têm de regressar ao Brasil para regularizar a situação junto aos consulados boliviano e brasileiro. E nisso se vão gastos extras que podem comprometer os estudos", destaca Sanches.