Eles quase não aparecem
na mídia, diferentemente de vítimas
pertencentes à classe média, meninos
de rua assassinados por grupos de extermínio
e cidadãos comuns, de vários grupos
sociais, mortos por balas perdidas ou pela brutalidade
policial. Vítimas sem glamour, os adolescentes
e jovens pobres envolvidos com o tráfico de
drogas e outras formas de criminalidade não
têm sequer parentes dedicados a cultivar sua
memória e a buscar Justiça.
Tampouco recebem apoio dos militantes de causas sociais.
Acabam morrendo no quase anonimato, "desovados"
em lixões da periferia ou em ruas das comunidades
mais pobres. São adolescentes que se matam
como feras e morrem como moscas, virando apenas mais
um número nas contas da assustadora taxa de
homicídios do País. A polícia
é responsável por parte dessas mortes.
Mas, na maioria dos casos, os assassinos são
os próprios jovens criminosos.
"Meu irmão morreu com uma granada que
explodiu em sua boca", diz J.S., de 16 anos.
Vivendo entre a rua e a Fundação São
Martinho, instituição que acolhe menores
de rua no Rio, e até recentemente envolvido
com o tráfico de drogas, ele diz possuir uma
pistola calibre 45 e já ter matado algumas
vezes.
Segundo o educador Fábio Anderson Araújo,
que trabalha na entidade, é difícil
descobrir o que é verdade e o que é
exagero num relato como o de J.S. Se por um lado a
necessidade de auto-afirmação típica
dos adolescentes fica presente nas histórias
de tiroteios e mortes, por outro o homicídio
é efetivamente parte da vivência desses
jovens e menores. Em outras palavras, é possível
que J.S. seja realmente um assassino.
Ele conta que seu irmão era o braço
direito de um chefe do tráfico no Complexo
do Alemão, conjunto de favelas localizado na
zona norte do Rio.
Segundo J.S., o conflito no qual seu irmão
morreu foi motivado por uma briga entre traficantes
que vendem cocaína "na mão",
ou seja, a granel, e os que embalam o entorpecente
em saquinhos de plástico, cobrando mais caro
pela mesma quantidade de droga. Seu irmão pertencia
ao primeiro grupo. "Tem muito olho grande, quanto
mais você ganha no tráfico, mais quer."
Poder - R.M., 16 anos, filho de um pedreiro
e uma empregada doméstica, diz ter três
irmãos e um primo no controle de uma boca-de-fumo
numa favela em Honório Gurgel, também
na zona norte do Rio.
Ele, que está fora do tráfico "só
nesta semana", tem inúmeras histórias
sobre tiroteios com a polícia. Também
afirma que já feriu policiais. "Não
sei se eles morreram depois." O menor utiliza
a mesma expressão de J.S. - "olho grande"
- para descrever a principal motivação
das mortes entre traficantes. "É muito
dinheiro, droga e mulher junto", diz. "É
bom porque você está com a arma, tem
poder."
As brigas entre integrantes do tráfico, de
acordo com R.M., resultam da rivalidade entre os grupos
ligados ao Comando Vermelho, do qual o menor faz parte,
e ao Terceiro Comando.
Ele afirmou que, num desses combates, morreram cinco
amigos seus. "Mas foram sete do lado deles."
Há também os "alemães",
como são chamados os membros da polícia.
Entre eles, os mais temidos são os homens do
Batalhão de Operações Especiais
(Bope) da Polícia Militar, envolvidos recentemente
no episódio desastroso do seqüestro do
ônibus 174 no Jardim Botânico. "O
Bope vai para matar e já chega atirando",
resume R.M. "Aí, a gente atira de volta."
Dor - Para as pessoas envolvidas profissionalmente
com adolescentes criminosos, perder um menor com o
qual existia um laço afetivo é um tipo
de sofrimento que faz parte do trabalho diário.
Araújo, da Fundação São
Martinho, estava de férias na Itália,
em junho, quando recebeu a notícia do assassinato
do menino Elemilton, traficante ocasional num ponto
perto do Museu de Arte Moderna (MAM), no centro do
Rio. "Não quis acreditar, estava com muita
esperança no caso dele", diz Araújo,
referindo-se a seu trabalho com Elemilton no centro
de atendimento da instituição. "Apesar
de todos os problemas, esses meninos às vezes
são tão carinhosos", afirma o educador.
"Eles ganham confiança em você e
se abrem."
Sem saída - A psicóloga Danielle
Goldrajch chega a cuidar de 70 casos simultaneamente,
na 2ª Vara da Infância e da Juventude do
Rio. Especializada em menores infratores, ela se lembra
bem de dois adolescentes envolvidos com o tráfico
que acabaram assassinados recentemente.
S.P.B. era descrito como "agressivo e completamente arredio" e criava
conflitos em todos os locais para os quais foi conduzido.
O outro, J.D.P., tinha perfil totalmente diverso.
"Ele estava começando a se questionar
sobre o que fazia e nunca mentia para mim", diz
Danielle. A psicóloga lembra-se da vez que
perguntou ao menor se ele não tinha medo de
morrer. "Na hora, ele respondeu que não",
afirma. "Ele disse que não conhecia outra
forma de vida." J.D.P. foi assassinado meses
depois, com 15 anos, em dezembro de 1999.
Redação
Terra / O Estado de S. Paulo
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