Fernando Gonsales é animal!
 

Formado em veterinária e biologia, profundo conhecedor da natureza animal, Fernando Gonsales despontou para a glória em 1986, quando venceu um concurso de quadrinhos promovido pelo jornal "Folha de S.Paulo". Desde então, a fama de seu personagem maior, o rato Níquel Náusea, só tem crescido, com sua tira sendo veiculada em mais de dez jornais em todo o Brasil. Acaba de lançar o primeiro livro inteiramente colorido de tiras. pela Coleção CyberComix.

Entrevista

Nossa expedição (Heinar, Tony e Pavão) esperou durante semanas o momento propício para realizar esta jornada. Munidos de equipamento (um gravador cassete) e mantimentos (um PEZ Dispenser do Star Wars), penetramos na distante região de Aclimação, até encontrarmos o habitat natural de nossa presa. Após alguns momentos de espera diante de uma morada aparentemente modesta, aconteceu o tão aguardado momento dramático da Natureza. Ele finalmente apareceu. De repente, estávamos frente a frente a este magnífico exemplar da rara espécie dos Cartunistus brasiliensis, Fernando Gonsales.

Fomos então reconhecer o território. Toda ornada com objetos, objetos, objetos e mais objetos representando animais, assim como vários troféus, a casa de Gonsales se situa em um terreno de declive acentuado (também conhecido como pirambeira). Descemos as escadas e encontramos um pequeno estúdio com prancheta e uma estante com livros de referência onde Fernando vai buscar inspiração para a tira Níquel Náusea, na qual ele diariamente tira um pêlo do mundo animal. O célebre traço de Fernando é tão marcante que é somente olhando em conjunto os originais das tiras que percebemos como o seu personagem mudou de aspecto desde o princípio até os dias atuais.

Logo ao lado da prancheta, encontramos um PC marca barbante, utilizado para finalizar e colorir as tiras. Entre os dois, um corredor que dá numa salinha entulhada até o teto com exemplares da revista Níquel Náusea (Em promoção! Ligue djá!). Um pouco mais abaixo chegamos ao jardim, cheio de árvores, flores e, segundo o dono, lesmas gigantes (gulp).

Voltamos rapidamente para a cozinha, onde demos curso à entrevista. Durante o decorrer da função, fomos graciosamente interrompidos pelo celular do Tony, de onde quadrinistas especialmente convidados puderam fazer suas próprias perguntas ao entrevistado.


Às perguntas!

Tony - Primeira pergunta: como é que se altera o config.sys?

Heinar - E o autoexec.bat...

Tony - Boa. Você sabe onde fica o autoexec.bat?

Fernando - Não. Não sei.

Tony - Hahaha! Nem eu.

Heinar - Mas ele tem uma técnica muito boa pra trabalhar com cores em PC furreca. Explica pro Tony como fazer pra trabalhar no Photoshop com pouca memória e pouco processador.

Fernando - Você pega a imagem em 300 dpi, salva o arquivo, faz uma cópia e baixa pra 150, 100, pinta tudo, volta pra 300 e cola o preto em cima.

Tony - Beleza. Grande dica. Vamos botar na revista Macmania e você vai ganhar uma camiseta.

Fernando - Pode pôr.

Tony - Bom, essa agora você deve ter estudado: você não acha que tá na hora de matar o Níquel Náusea, que nem o Angeli fez com a Rê Bordosa?

Fernando - É... acho que sim.

Tony - Encheu o saco do personagem?

Heinar - Quantos anos tem o Níquel?

Fernando - 13 anos...

Heinar - De publicação.

Tony - Mas, antes do concurso da Folha, você não tinha o personagem?

Fernando - Tinha, mas não tinha nome, não tava formatado.

Tony - Quantas tiras você já fez?

Fernando - Umas 3.500.

Tony - Caceta! Quantos jornais publicam o Níquel Náusea?

Fernando - Mais ou menos uns dez. Entra num, sai noutro, mas em média fica nos dez. Tá na Folha de S. Paulo, Zero Hora, Correio Braziliense, Diário do Comércio...

Heinar - Você já tentou exportar o Níquel Náusea? Traduzir pro inglês.

Fernando - Sempre penso nisso, mas nunca tive culhão.

Heinar - Não teve uma vez que quase rolou? Bolaram um nome diferente, Nickel Noise, uma coisa assim?

Tony - A Priscila tentou, não foi?

Fernando - Foi. Diz que nojo em inglês também é parecido com Náusea. Niquel Nojo é legal.

Tony - Nickel Odeon. Ia fazer o maior sucesso.


O caminho das pedras

Tony - Os autores novos de tirinhas sempre reclamam que não tem espaço pra eles na imprensa. Tem um caminho das pedras? Que dica você dá prum cara que tem um personagem que ninguém conhece e ele tá a fim de publicar?

Fernando - O meu caso foi meio atípico. Acho que eu sou um dos únicos quadrinistas concursados no Brasil.

Heinar - Só. Você ganhou da nossa tira, o Mikhail Jackson.

Tony - É. A gente detestava o Níquel.

Fernando - Mas depois, teve mais dois concursos na Folha.

Tony - No terceiro ganhou o Hard, e no segundo?

Fernando - Foi o Fê.

Heinar - O Fê fazendo tirinha?

Fernando - É, mas não chegou a publicar.

Tony - Ganhou, mas não levou.

Fernando - Ganhou, mas acabou ficando lá pra fazer ilustração.

Tony - Tudo bem, e hoje? Concurso de tirinha não tem mais. Como o cara que tá começando faz pra publicar?

Fernando - Em primeiro lugar, acho que ele tem que criar um certo volume. Menos de 50 tiras não impressiona. Fica com cara de amador.

Tony - E depois? Grande jornal não adianta muito insistir, né? É um espaço que já tá meio fechado. Qual é o caminho?

Fernando - Jornal do interior, jornal de bairro, de empresa... tem muita empresa fazendo jornal. É bom pra dar cancha.

Tony - Você acha que procurar a PacaTatu (distribuidora de tiras nacionais) é uma boa?

Fernando - É uma boa, mas eles estão meio fechados também. Eles tão distribuindo mais de trinta tiras. Tão meio saturados.

Tony - Trinta tiras nacionais!

Fernando - É, tem tira pra caramba. Fora as que saem na Folha, tem o pessoal do Sul: Santiago, Edgar Vasques...

Tony - O Edgar tem tira?

Fernando - Tem a tira mais antiga do Brasil, o Rango.

Heinar - Enquanto existir a fome neste país, o Rango vai persistir.

Tony - Eu tinha mais uma pergunta sobre a PacaTatu, mas não tou lembrando. Faz uma aí, Heinar.

Heinar - De onde você tira suas idéias?

Pavão - Essa não vale. Essa é minha. Eu falei pra você não perguntar...

Heinar - Tá bom. Quando você começou a desenhar?

Fernando - Desde moleque.

Tony - Você fez algum curso de desenho na sua vida?

Fernando - Não.

Tony - Yesss!

Fernando - Por quê?

Tony - Ah! Eu acho que quem precisa fazer curso não sabe desenhar, devia desistir. Se o cara chega na adolescência e ainda acha que precisa fazer curso, ele não é do ramo.


De doutor a cartunista

Heinar - Bom, vamos continuar com a história. Você desenhava o quê? História em quadrinhos, mesmo?

Fernando - Eu tenho um irmão mais novo, o Carlos Alberto, a gente desenhava junto. Um começava uma história, o outro terminava. Dava palpite na história do outro.

Heinar - Lia muito gibi?

Fernando - Não demais. Lia Disney.

Tony - Vocês nunca pensaram em fazer uma dupla como os Hernandez, "Los Bros Gonsales"?

Fernando - Podia ser, mas agora ele é músico.

Tony - Ah, o mesmo lado do cérebro!

Fernando - É?

Tony - É por isso que os desenhistas têm um monte de amigos músicos e os músicos têm um monte de amigos pintores; é o mesmo lado.

Heinar - E é por isso que nenhum tem amigo engenheiro, bancário...

Tony - Bom, que você fez antes de entrar na Folha?

Fernando - Jornal de Centro Acadêmico... publiquei uma história de terror numa revista da Vecchi.

Tony - Qual? Na Kripta?

Fernando - Não, a Kripta era só material estrangeiro. Foi na Sobrenatural. O Ota foi meu primeiro editor.

Tony - Eita! Começou com o pé direito. Recebeu pela história?

Fernando - Acho que recebi. Não era nada significativo, mas recebi.

Heinar - Mas conta: como você foi parar na veterinária?

Fernando - Era uma curtição. Desde moleque eu gostava muito de bicho.

Tony - Teve muito cachorro, gato?

Fernando - Não.

Heinar - Mas tem a coleção Os Bichos encadernada.

Tony - Isso o Spacca também tem, e nem por isso ele se formou em veterinária.

Heinar - Se formou?

Fernando - Me formei. Em biologia também. Ao todo, fiquei 17 anos na universidade.

Tony - Doutor, eu tou com um problema aqui no passarinho...

Fernando - Ihh... vai ter que abater!

Heinar - Mas você chegou a seguir a profissão?

Fernando - Trabalhei um ano em Tucuruí, no Pará.

Tony - Em hotel de cachorro?

Fernando - Não, nada disso. Sabe aquele negócio de inundação causada por hidrelétrica?

Tony - Uau! Você foi salvar cobra na árvore.

Fernando - É, mais ou menos isso. Mas é uma enganação, aquilo. O bicho morre de qualquer jeito. Os caras tiram os bichos de um lugar e botam em outro que vai inundar depois. E quando inunda a floresta, acaba a comida dos bichos. Eu não me orgulho daquilo. Mas na época era legal, se meter numa bocada dessas, acampar na floresta...

Tony - Foi depois disso que você desistiu de ser veterinário?

Fernando - Mais ou menos...

Tony - Ou foi da vez que aquele cachorro ingrato te mordeu?

Fernando - Não... é que eu queria desenhar. Mas a gente nunca sabe se vai dar certo nessa carreira.

Heinar - E aí... deu certo?

Fernando - Eu voltei de Tucuruí e os caras falaram: "tem um concurso aí da Folha". Aí eu juntei tudo o que eu tinha e mandei.

Tony - Você mandou tira, ilustração?

Fernando - Tinha até charge política. Muito ruim.

Tony - O presidente era um leão, o ministro era um gambá...


Onde estão as histórias novas?

Heinar - Pergunta feita especialmente pela leitora Thaís: você é casado, tem namorada?

Fernando - Eu moro com a Marília há vários anos. Sete anos de concubinato.

Heinar - Xii, Thaís, não foi dessa vez.

Tony - Como é ser uma unanimidade? Você conhece alguém que não goste do Níquel Náusea?

Fernando - Ah, tem uns caras. Não me considero uma unanimidade.

Heinar - E os fãs? Como é o relacionamento?

Fernando - É legal. É um negócio meio esporádico. Só em eventos.

Heinar - Ah, eu tenho contato com seus fãs todo dia. E eles sempre perguntam: "cadê as histórias novas do Níquel?"

Tony - Essa eu também cansei de responder, agora é sua vez. Por que você não faz histórias novas para CyberComix?

Fernando - Bom, a questão é objetiva. Eu tenho um problema de coluna. De uns anos pra cá, ela deu um prego. Então, tem que maneirar na carga de trabalho, fazer fisioterapia, natação, não dá pra detonar. Então, apesar de ser uma atividade superlucrativa, eu tenho que me abster disso.

Heinar - Foi a revista do Níquel que acabou com a sua coluna?

Fernando - Não, é uma coluna bichada desde a infância. Mas com os anos se somando, os problemas começaram a aparecer.

Tony - E o computador não aliviou?

Fernando - Pelo contrário. Quando o computador chegou aqui, essa história de não saber mexer com o mouse, cadeira giratória... isso acabou comigo.

Tony - Também, ficando a noite inteira vendo site de mulher pelada...

Fernando - Não, nem tem Internet aqui... mas o computador foi a gota d'água da minha coluna.

Heinar - É porque é um PC.

Fernando - É... se fosse um Mac...

Heinar - O problema são os dois botões. Mouse com dois botões faz mal à coluna.


Fazer gibi faz mal para a coluna

Tony - O que é mais fácil de fazer: piadas com personagens ou aquelas piadas soltas?

Fernando - As soltas.

Tony - As soltas têm crescido nos últimos tempos, não tem?

Fernando - Eu procuro manter uma proporção, mas ela vem tendendo cada vez mais pras soltas. Personagem acaba esgotando o assunto...

Heinar - E como é que foi ter uma revista mensal?

Fernando - Na verdade, saíram 29 números em dez anos, era quase semestral. Mas é legal: a gente chama os caras, escolhe as histórias. Você mesmo fez um monte de parcerias com o Spacca. Mas a revista era meio amadora, não tinha retorno financeiro, periodicidade, não pagava direito...

Heinar - Como não pagava? Eu cheguei a receber...

Fernando - Ah, mas era o quê? 15 reais por página...

Heinar - Pra mim era uma maravilha, salvava a pátria.

Tony - Heinar sente falta até hoje dos 15 paus.

Fernando - ...o editor era dono de uma fábrica de móveis...

Tony - Pelo menos ele não te pagava em banquinhos...

Fernando - Mas talvez por isso mesmo ela durou tanto. A revista não precisava ser lucrativa, bastava se pagar.

Heinar - Até que um dia ela não se pagou mais e acabou.

Fernando - Não, não foi, o problema foi a coluna mesmo.

Tony - É o único gibi que teve alguma justificativa pra ter acabado que não o Plano Collor.

Fernando - O último número saiu bem depois do fim do Plano Collor e pagou a edição.


A receita do sucesso

Tony - Alguém já acusou o Fliti de fazer apologia às drogas com essa história de naftalina?

Fernando - Não, quem presta atenção no Fliti é porque consome e aprova. Os outros nem entendem a piada.

Tony - Quais foram os personagens que não deram certo?

Fernando - De cara eu fiz um cachorro, nem cheguei a dar nome, mas não deu certo.

(Toca o celular do Tony: é Osvaldo Pavanelli)

Tony - Osvaldo, qual é a sua pergunta para Fernando Gonsales?

Osvaldo - O Níquel Náusea é certamente um personagem de grande apelo popular. Um personagem que podia ser publicado em qualquer país. O que falta para isso acontecer?

Fernando - Faltou um pouco de culhão mesmo. O negócio lá fora é briga de cachorro grande, pelo que eu vi do Henfil. Então eu penso: "se é pra ir, tem que ir direito". Antes das duas mil tiras, eu achava cedo. Agora pode ser. Vocês leram o livro dos dez anos do Calvin? O esquema lá não é brincadeira. Qualquer contrato que você assina tem que botar a mãe no meio. Já prevê filme, licenciamento, se você quiser parar de fazer o personagem eles podem botar outra pessoa no seu lugar. Eu tenho medo de duas coisas: de dar certo, porque é uma coisa muito grande, ou de não dar, armar e não rolar nada. Tem tanta gente boa que não conseguiu furar essa barreira! Se alguém souber me dizer o nome de uma tira publicada mundialmente que não seja americana (fora o Zé do Boné, que é inglês), diga, que eu não conheço. Mas isso não quer dizer que não vale a pena tentar, arranjar um tradutor legal e meter as caras.

Tony - Espera a Fernanda Montenegro ganhar o Oscar! Isso vai abrir as portas pra gente, rapaz. Hollywood vai fazer um longa do Níquel.

Fernando - Se a Fernanda ganhar, eu prometo que vou pros EUA. Se eu soubesse falar inglês, talvez ajudasse um pouco.


Eu e os bichos

Tony - Qual tua maior influência no desenho? É o Aragonés?

Fernando - Não. É o Canini, do Recreio, Kactus Kid, Zé Carioca.

(Toca o telefone; é Orlando Pedroso, mas ele não sabe o que perguntar, diz que vai ligar mais tarde)

Tony - Pergunta alguma coisa aí, Pavão. Não vai fazer que nem o Mario, que foi entrevistar o Laerte e só fez uma pergunta.

Pavão - De onde você tira suas idéias?

Heinar - Essa não! A gente até já tirou foto de onde ele tira as idéias dele.

Tony - É. A gente vai botar um link aqui para a coleção de Os Bichos.

Heinar - Você já teve animais de estimação?

Fernando - Tive um cachorro quando era pequeno.

Heinar - E hoje, qual sua relação com os animais de verdade?

Tony - Ele tá criando uma fêmea da espécie humana.

Fernando - Não tenho animal nenhum. Não gosto de bicho preso.

Tony - E aí, nesse mato?

Fernando - Aí tem bastante bicho. Tem passarinho, formiga, umas lesmas desse tamanho...

Heinar - Você dá amendoim salgadinho pra elas?

Tony - Eu achava que você tinha uma tartaruga; você faz tanta piada com tartaruga...

Fernando - Talvez eu tivesse um gato. Um cachorro num quintal pequeno eu acho equivalente a um passarinho numa gaiola. É claustrofóbico. O cachorro fica neurótico. E peixe? Você tira o peixe de um aquário redondo, põe num retangular e ele continua nadando em círculos.

Tony - Tipo pulga amestrada...

Fernando - Pulga, eu tive uma...

Tony - Era aquela que você dava de comer no próprio braço?

Fernando - Isso...

Tony - Putz, essa história é maravilhosa. O cara botava o copo assim, né... (Tony põe a mão em forma de copo no braço)

Fernando - Era um vidrinho...

Tony - Quantas vezes você deu sanguinho pra ela?

Fernando - Várias vezes.

Heinar - Tinha nome, a pulga?

Fernando - Não. Era só "a pulga".

Tony - E além desse, teve outros animais exóticos?

Fernando - Quando eu era moleque eu tinha gafanhoto, aranha, rã, hamster...

Tony - Daqueles que correm na rodinha?

Fernando - É. Mas agora eu peguei bronca disso.

Tony - Ele morreu?

Fernando - Sim, ué. Tive dezenas.

Tony - Você matou, confessa. Ibama! Mãozinha na cabeça!

Fernando - Não. Eles morrem de velhos.

Heinar - O problema é que eles ficam velhos em três semanas.

Fernando - E depois, o que você vai fazer com os filhotes? Liga pra amigo: "pelo amor de Deus, você não quer um hamster?"


De onde vem tanto dinheiro

Tony - O que você acha do Mickey?

Fernando - Ah, aquele Mickey antigo é legal. Depois ele ficou muito bonitinho, virou amigo da polícia.

Tony - Mas o Níquel nasceu como um anti-Mickey, ou não era essa a intenção?

Fernando - Não, o Níquel nunca foi uma negação do Mickey.

(Toca o celular; é Orlando Pedroso)

Orlando - Quando eu vou poder comprar o xampuzinho e o sabonetinho do Níquel Náusea e a fraldinha do Fliti? O licenciamento é a única forma de um autor sobreviver às custas de seus personagens?

Fernando - Não acho que o licenciamento seja a única forma de ganhar dinheiro. Eu acredito em publicar várias vezes o mesmo trabalho.

Tony - Alguém já te procurou alguma vez pra fazer licenciamento? Ou você procurou alguém?

Fernando - De concreto, nunca houve nenhuma proposta.

Tony - Eu já vi outdoor de inseticida com mosquito desenhado por você. Por que não tem anúncio do Racumin com o Níquel ou do Rhodiasol com o Fliti?

Fernando - Nesse caso, foi uma conversa mais simples. Os caras pediram "desenha um mosquito" e eu desenhei. Agora, licenciar personagem pra campanha é mais complicado. E nunca rolou.

Tony - Mas você faria com um sorriso nos lábios? É só pagar?

Fernando - Não, eu não faria com um sorriso nos lábios. Faria pra ganhar dinheiro. Mas não gostaria muito. Acho que dá uma massacradinha no personagem. Coloca ele fora do contexto.

Heinar - Mas o fato é que é uma coisa distante mesmo. Existe um processo aí, que é o personagem explodir na mídia, atingir um nível de exposição pros caras se interessarem em capitalizar com licenciamento.

Tony - E a história deles serem personagens nojentos atrapalha? Ser um rato e uma barata?

Fernando - Deve atrapalhar. Normalmente, quem pensa em licenciamento já pensa nisso desde o começo. "Eu vou criar uma tira, com personagens dirigidos a esse público etc."...

Heinar - Naahh! Isso também não funciona. Fica falso.

Tony - Vira Hello Kitty. Como licenciamento é maravilhoso, mas como personagem não existe. Não tem conteúdo, é só forma.

Fernando - Veja outros personagens, como o Hägar. Eu não vejo ele muito como objeto de licenciamento.

Heinar - Também, um viking gordo, escroto, barbudo... O Hagar não é nenhum Snoopy.

Tony - Já pensou? Salsichas do Hägar. Putz! Devem estar no supermercado desde 1200.

Fernando - Já os Simpsons são uma família escrota e têm um puta licenciamento.

Tony - Mas que aqui no Brasil não colou muito.

Heinar - Teve sua época. Mas também não são nenhum Piu Piu.

Tony - Se for ver bem, aqui no Brasil, nem o Senninha pegou como licenciamento forte.

Fernando - O Mauricio de Sousa pegou.

Tony - Mas o Mauricio é o rei de revender a mesma lingüiça várias vezes. Ele tem um esquema superprofissional e os personagens são anódinos o suficiente pra virar lancheira, presunto, pasta de dente...

Heinar - E tão aí há mais de 35 anos.

Tony - O Mauricio começou junto com o Jaguar. O Jaguar é que diz: "o Mauricio ficou rico e eu não". Eu errei em alguma hora. Sabe qual foi o problema do Jaguar? O personagem principal dele era um rato. O outro era Gastão, o Vomitador.

Fernando - Lancheirinha do Gastão ia ser um sucesso.

Heinar - Dá pra viver de tirinha?

Fernando - Tou vivendo quase só de tirinha. Mas eu faço uns freelances de ilustração, publicidade. Mas eu também tenho uma vida bem simples. Não como em restaurante. Não tenho filho...

Tony - Não tem cachorro.

Heinar - Se fosse que nem o Laerte, com cinco filhos, quatro mulheres, dois gatos, uma tartaruga...

Fernando - Aí complica.

Heinar - A gente pode dizer que a tirinha representa uns 70% da sua receita?

Fernando - É. Mas até chegar nisso, eu passei muitos anos ganhando bem menos, vivendo na casa dos pais etc.

Tony - Fala a verdade: é a Marília que sustenta essa casa. Qual é a profissão dela?

Fernando - É veterinária também.

Tony - Vocês se conheceram na faculdade?

Fernando - Sim.

Tony - Issa! Din din din din din dindin dindin (para cantar com o tema do filme "Romeu e Julieta").

Fernando - Ela é quem pinta as tiras todas.

Heinar - Já virou uma tradição no mercado de quadrinhos, botar a mulher de colorista.

Tony - Isso se chama tripla jornada: a mulher trabalha fora, chega em casa, faz a comida, faxina e depois vai pintar tira.

Fernando - E tem que ficar bem pintada, senão leva bronca.

Tony - Que tira você gosta?

Fernando - Hägar, quando era feito pelo pai (Dik Browne); eu lia bastante Os Bichos (a tira), B.C., Frank & Ernest, o Mago de Id, Mafalda...

Heinar - As clássicas.

Fernando - E Disney, né? As histórias feitas pelo Carl Barks.

Tony - Quando é que a gente vai ter um parque temático do Níquel, com piscina de bolinha de naftalina do Fliti, Floresta Encantada do mago Vostradeis e um cara suando vestido de rato azul?

Fernando - Bom, se pro Mauricio demorou uns trinta anos, acho que lá por 2025...

Heinar - Você se considera um ecologista?

Fernando - Acho que sim, só não sou muito panfletário. Já fui de grupo ecológico, vender adesivo, mas o discurso ecológico tá se esvaziando um pouco, ficou meio chato. Mas eu voto no Partido Verde.

Heinar - Votou no Sirkis?

Fernando - Votei.

Heinar - Eu também.

Fernando - Também? Então fomos nós!

(Toca o telefone. É o Spacca)

Spacca - Quando é que vai sair o álbum do Vostradeis?

Tony - Ele levantou a sobrancelha e franziu a testa...

Fernando - Ano que vem.

Spacca - Não era bem o que eu queria ouvir.

Tony - Tá bom, então semana que vem. Já tem editora?

Fernando - Não.

Spacca - Editora é o de menos.

Tony - Como, o de menos? Que você tomou hoje de manhã, Spacca? Falando nisso, quando você vai entregar uma história pra CyberComix?

Spacca - Ano que vem.

Tony - Haha! Aprendeu com o mestre. Sabe tudo!


Os bichos evoluem

Heinar - Você não tem saudade do Vostradeis?

Fernando - Putz, tenho muita!

Heinar - Eu também.

Fernando - Às vezes eu tenho vontade de parar de fazer tira e fazer só histórias do Vostradeis.

Pavão - Nunca rolou o Vostradeis em tira?

Fernando - Ah, não cabe. Eu já fiz umas tiras, mas não fica legal, o personagem pede umas histórias mais longas.

Pavão - É engraçado. Com o Níquel é o contrário. Algumas histórias pareciam um monte de tiras coladas.

Fernando - E eram mesmo. Eu fazia as tiras e depois costurava, punha um quadrinho aqui, outro ali...

Tony - É a escola Frankenstein de quadrinhos!

Pavão - Por que você fazia isso?

Fernando - Porque não consigo fazer história comprida com o Níquel. Eu preferia fazer várias tiras e alinhavar. E depois eu ainda podia republicar.

Heinar - Olha o cara! Tem tudo pra virar Mauricio.

(Toca o telefone. É o Laerte)

Laerte - Quando o Niquel Náusea começou, ele era escroto e pesado. Quando apareceu o Fliti, ele roubou a cena, virando o personagem mais legal. Você pretende fazer alguma coisa a respeito disso ou já se conformou?

Fernando - É, foi meio o que aconteceu mesmo. O Níquel é um personagem meio revoltado e o Fliti é meio porralouca. Ele levantou a tira num momento bom, em que ela corria o risco de sair da Folha porque o pessoal tava achando sem graça. As outras duas tiras que entraram junto com o Níquel (Alfredinho Canibal, de Ignatz, e Camarillo Brillo, de Flávio del Carlo) já tinham dançado.

Tony - Você ficou com medo?

Fernando - Claro que fiquei! Minha tira era a antepenúltima, depois caiu pra penúltima e depois ficou lá embaixo. Aí o editor chegou e disse que a tira tava meio caída. Passei um bom tempo abrindo o jornal de manhã só pra ver se a tira ainda estava lá. Acho que, se não fosse o Fliti, a tira tinha dançado. Mas se eu forçasse muito o Fliti, ela podia ficar uma coisa meio estereotipada. Aí eu dei uma mexida no Níquel e ele ficou mais leve. E depois, quando entraram as tiras sem personagens, ficou mais leve ainda.

Tony - As tiras de boi, tartaruga, sapo e lesma. Se juntar esses quatro, acho que dá 90% dessas tiras genéricas.

Pavão - Você nunca fez tira com pavão?

Fernando - Pavão? Fiz. Era um cara tirando fotografia de um pavão que na verdade era umas galinhas sem rabo posando em frente a um poster de rabo colorido pintado.

Tony - Depois que o Níquel casou, a mulher e os filhotes deram pano pra manga. A mulher do Níquel tem nome?

Fernando - Não tem nome. Eu chamava ela de "gatinha".

Tony - Aí veio o Laerte e tascou um processo em cima de você!


O Viagra do cartunista

Tony - Quanto tempo você está à frente do que sai na Folha?

Fernando - Acho que uns dois meses. Eu gosto de trabalhar adiantado. Eu gosto de trabalhar por etapas. Passo uma semana bolando várias piadas, na outra eu desenho, na seguinte eu pinto.

Heinar - Qual é o Viagra do cartunista?

Fernando - Como é?

Heinar - O Laerte ontem tava reclamando que não consegue mais fazer história longa. Que começa com o maior tesão, mas lá pela quarta página já brochou.

Fernando - Não sei se tem a ver, mas o Negreiros me ensinou uma técnica, que é não começar a finalizar a história na seqüência das páginas, mas começar na quinta, depois pular pra terceira e ir salteando pra ter mais consistência no resultado final.

Tony - Puta dica! Eu sempre reclamei com o Libero que a arte final dele no Vira-Lata variava muito.

(toca o telefone. É Mario AV)

Mario AV - De onde você tira suas idéias?

Heinar - Essa a gente já sabe!

Mario AV - OK. Então: por que você gosta de usar só tons pastéis na hora de pintar a tira?

Fernando - Eu acho que o jornal chupa muito a cor.

Heinar - Você tenta seguir um certo rigor científico nas tiras, não tenta?

Fernando - Procuro. Tento não dar muita batatada. Mas às vezes não dá. Por exemplo, a vaca só tem dente embaixo. Mas isso não fica legal no desenho de uma vaca sorrindo, então eu ponho dente em cima também.

Tony - Os colegas de biologia e veterinária devem ter um prazer extra com as piadas, principalmente as de protozoários.

Fernando - A idéia é que todo mundo entenda, mas com certeza quem é do ramo curte mais. Principalmente as de protozoários.

Heinar - É verdade que o maxilar das baratas se mexe na horizontal?

Fernando - Essa eu não sei.

Heinar - Eu li isso numa história do Don Martin.

Tony - Olha, o Don Martin é um dos caras menos fiéis à realidade que eu conheço.

Heinar - E de onde veio a idéia de fazer uma tira sobre bichos?

Fernando - Eu acho que uma tira tem que ter um certo universo. Uns limites. Às vezes eu bolo uma piada, mas ela só tem humanos, aí eu guardo e não uso. Eu comecei a abrir para seres mitológicos.

Heinar - Medusa não vale, porque tem bicho no cabelo.

Tony - Ih! Medusa tá pau a pau com tira de boi. Tem muitas.

Fernando - Abri também pra contos de fada. Branca de Neve, anão... super-herói.

Heinar - Homem-Aranha não vale porque tem aranha, Batman tem o morcego. Você lê quadrinho de herói?

Fernando - Não leio. Nunca li nada. Nem Super-Homem, nem Batman... não gosto nem muito da diagramação desses quadrinhos de herói novos. Nem consigo ler.

Tony - E Mônica e Cebolinha?

Fernando - Já li bastante. E hoje, lendo umas Mônicas antigas, deu pra perceber que as histórias eram melhores.

Tony - Você já pensou alguma vez em chamar alguém pra ajudar a fazer a tira?

Fernando - Não. Nunca pensei. Mesmo porque a demanda é pouca. Desenhar ou fazer a arte-final, depois que eu bolei a história inteira, é a parte mais fácil do trabalho.


Saideira

Heinar - Você acredita no poder de substâncias químicas sobre a criatividade?

Fernando - Eu acho que atrapalha. Tem umas que, em vez de desenhar, dá vontade de sair correndo. Outras que dá vontade de dormir, de comer brigadeiro...

Tony - Ele é viciado em iogurte!

(Toca o telefone. É o Adão)

Adão - Se você fosse um bicho, que bicho você gostaria de ser?

Fernando - Um tubarão, pra comer todo mundo.

Heinar - Uia, o cara é espada!

Tony - Só! Peixe-espada.

Adão - E se você fosse uma bicha, que bicha você gostaria de ser?

Tony - Lombriga!

Fernando - Uma Taenia saginata.

Pavão - Solitária?

Fernando - Não. Solitária é muito deprê.