
Por
onde anda
Um
mito que volta
O travesti Telma Lip retoma carreira e interpreta uma filha bastarda
no teatro depois de passar os últimos cinco anos cheirando cocaína
e fumando crack
Carlos
Henrique Ramos
Silvana Garzaro
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“Graças
a Deus eu parei com as drogas, estou limpa há quatro meses”,
garante Telma Lip, que promete reconquistar o público paulista
com seu trabalho no teatro.
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A
mulher mais bonita do Brasil é um homem. Foi dessa maneira
que o Rio de Janeiro lançou Roberta Close, no início
dos anos 80. Para enfrentar a concorrência bairrista, os paulistas
contra-atacaram com Telma Lip. Sucesso total. Das boates gays, em
tempo recorde saltou às páginas da revista Playboy,
em 1984, na edição que estampava a capa com Beth Faria.
Dali, transformou-se em personagem principal do time de jurados
do programa do apresentador Edson Bolinha Cury, na TV
Bandeirantes.
Depois
de reinar absoluta por mais de uma década, o travesti mais
famoso de São Paulo desapareceu de cena. Deram-no até
como morto, dizimado pelo HIV. Nada disso. É fato que Deodoro
Ricardo, 35 anos, seu nome verdadeiro, viu a cara da morte. Nos
últimos cinco anos, ele chafurdou nas drogas. Eram 24 horas
em companhia da cocaína e do crack. Eu estava no pântano,
vivia no inferno e pensava em me suicidar, revela. Graças
a Deus parei com tudo isso, sem tratamento e com muita força
de vontade. Estou limpa há quatro meses, completa.
O
travesti voltou. Ou pelo menos tenta voltar. Distante da mídia
e esquecido pelos fãs, o retorno ainda é tímido,
no elenco de A Filha das Mães, espetáculo que
vai reestrear em setembro, após temporada de três meses
no Teatro Itália, na capital paulistana. No palco, seu personagem
é uma filha bastarda. O papel é pequeno, mas sua atuação
é digna, na opinião do diretor e autor da peça,
Ronaldo Ciambroni. Telma Lip possui um talento que precisa
ser trabalhado. Mas, antes de qualquer julgamento, eu a vejo como
vitoriosa depois de ter superado o vício, acredita.
Gesuína Ricardo Nascimento, a mãe, enxerga a recuperação
como um milagre. Não suportava mais vê-la daquele
jeito, trancada no quarto, sem forças para reagir. Foi o
momento mais triste da minha vida, confessa.
Na
verdade, foram vários momentos de desesperança. Principalmente
quando a compulsão levava o filho de dona Gesuína
à cracolância ponto tradicional de drogados
na região central de São Paulo. Lá, jogado
na calçada e trajando roupas puídas, convivia com
viciados. Todos os dias, comprava e consumia ali mesmo. Numa certa
ocasião, fumou 15 pedras de crack de uma só vez. Voltava
quantas vezes fossem necessárias naquele local para reabastecer
seu estoque. Parecia uma maloqueira, diz. Quando faltava
dinheiro, prostituía-se. Saía com traficantes
pela cocaína, admite. O vício, por pouco, não
pulverizou seu patrimônio. O apartamento de dois quatros em
que mora há mais de 20 anos, presente de um ex-namorado,
foi preservado. Mas as jóias, um carro e uma moto tornaram-se
moeda de troca. Vivo muito modestamente, com a ajuda da minha
própria família.
LUTA
CONTRA RECAÍDA Em meio à turbulência, temia
estar infectado pelo vírus da aids. Um exame atestou sua
saúde. Tive sorte. O controle é realizado
mensalmente. Dá para contar nos dedos os amigos que
não morreram, afirma. Telma Lip trava um embate diário
e tenaz contra a recaída. Atualmente, garante que não
sente o mínimo desejo nem necessidade, apesar de a cocaína
ter sido uma presença constante em sua carreira. Ainda
tenho medo. A primeira vez foi aos 25 anos. O uso, no entanto,
era eventual. A procura tornou-se habitual a partir de 1995, quando
o travesti não causava o mesmo frisson nos fãs. Essa
relação com a fama é complicada. Sentia falta
daquele glamour, as coisas não estavam mais acontecendo e
ficava frustrado, explica.
Depois
de resolver a convivência com o anonimato, Telma Lip promete
fugir do ostracismo para reconquistar o público paulistano.
O travesti que foi coroinha de igreja na infância, excelente
aluno e vestia-se de mulher já aos 15 anos, vislumbra um
futuro promissor. Seja no teatro ou mesmo no cinema, em que pretende
se arriscar. Não sou uma travestizinha qualquer,
define-se. Solteira, sonha com um namorado. Ela confessa que ainda
sente-se sedutora, principalmente quando acelera sua Vespa, verde
reluzente, pelas ruas da cidade. Tenho recebido muitas cantadas.
Enquanto isso, cuida dos 66 quilos distribuídos em 1,74m
de altura, pedalando numa bicicleta ergométrica. Os cabelos,
longos, lisos e pretos, também merecem cuidado especial.
Afinal de contas, Telma Lip acredita que uma das mulheres mais bonitas
do Brasil continua sendo um homem.
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