
Livro
Como
na ficção
O escritor de Capão Pecado, obra que retrata o cotidiano violento
nas favelas de Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo, recebe ameaças
de morte
Cesar
Guerrero
Foto:
Edu Lopes
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“Recebi
telefonemas com ameaças de morte”, diz Ferréz, no beco que
serve de cenário para a trama do livro lançado há um mês
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Burgos
puxou a pistola italiana Beretta calibre 22 da cintura e mandou
ele dar o último trago de sua vida. Ele fumou, jogou a ponta
no chão e caiu na quadra com um tiro no meio da testa. Burgos
disparou somente uma vez, colocou a pistola na cintura novamente,
pegou a pontinha no chão, voltou a acendê-la e saiu
fumando pela favela.
Quando
Reginaldo Ferreira da Silva, 24 anos, vulgo Ferréz, lançou
o livro Capão Pecado, em junho pela editora Labortexto,
não imaginava que poderia viver as mesmas agruras das vítimas
de Burgos, um dos protagonistas da sua obra, cuja tarefa diária
é acertar, à base de balas, os débitos de viciados
em drogas. Ferréz tem recebido ameaças na favela onde
mora, depois que sua história chegou às livrarias.
Já foram vendidos mil exemplares, um terço da
tiragem inicial, diz João Eduardo Oliveira, editor
executivo da Labortexto. Ferréz não põe o pé
fora de casa, em Capão Redondo, zona Sul de São Paulo,
sem antes examinar o movimento da rua. Recebo telefonemas
com ameaças de morte, conta o escritor, que mora em
casa de alvenaria, sem forro, mas tem telefone. Quem quiser
me matar pode vir aqui e tentar a sorte, desafia o autor.
MORTE
POR R$ 5 Ferréz virou alvo ao relatar a história
de Rael, que se apaixona por Paula, namorada de Matcherros, seu
amigo. A narrativa seria mais um folhetim se não fossem os
episódios que desnudam o cotidiano da favela. O autor conta,
por exemplo, como agem os pistoleiros de plantão, capazes
de arrancar a vida de uma pessoa por R$ 5. Ou então, o desprezo
de um garoto pelo pai, alcoólatra, e o envolvimento dos protagonistas
com tráfico de drogas e assaltos. É um retrato
do que acontece todo dia na favela, diz.
Capão
Pecado é uma espécie de documentário em
forma de ficção, já que boa parte dos personagens
vivem, em carne e osso, nas vielas da favela. O autor conta cenas
que ele e tantos outros moradores viram e ouviram no convívio
diário com a falta de comida, emprego e melhores condições
de moradia. Aqui é um local que tem muitas histórias
para serem contadas, basta olhar pela janela, diz Ferréz.
Desde
que deixou o útero da mãe, Maria Luiza, Ferréz
mora em Capão Redondo. Ela era empregada de playboys,
conta. Hoje é dona de casa. Seu pai, Raimundo,
é motorista aposentado da Companhia de Abastecimento de Água
do Estado. Por conta da pouca renda da família, o autor estudou
em escola pública. Já no início da adolescência,
acordava cedo para entregar pães nas escolas da região.
Mais tarde, atendeu fregueses da padaria local. Nas horas vagas,
lia histórias em quadrinhos e jogava videogames. O ponto
de encontro com amigos era um poste de luz da favela. Detalhe, aliás,
que também aparece no decorrer das 172 páginas do
livro. Foi lá que ouvi a maioria das histórias
registradas, conta.
Antes
de virar escritor, Ferréz trabalhou como pintor de ferro
numa indústria metalúrgica da região. Nessa
época, começou a ter contato com os grupos de rap
e entrou de cabeça no movimento hip-hop. Compôs algumas
letras de música. Mas, o sonho de contar histórias
o levou a gastar suas economias em um computador. Ferréz
levou quatro anos para chegar ao último capítulo de
Capão Pecado. A demora não foi somente por
conta da falta de experiência do autor. Durante um temporal,
teve parte do trabalho perdido numa enchente. Meu quarto ficou
todo alagado, lembra. Os contratempos não pararam por
aí. Por pouco ele não ficou sem personagens. Os
caras iam morrendo e eu tinha de reescrever vários trechos
do livro, conta.
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