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Bibi,
na varanda de seu apartamento, que tem
vista para o Pão de Açúcar: “Gosto de
tudo que se torna popular”, diz ela |
Uma imponente biblioteca chama atenção
no amplo apartamento de Bibi Ferreira, no bairro
do Flamengo, no Rio. São 4.500 títulos,
organizados cuidadosamente por temas. Na sala,
um piano de cauda antigo alegra o ambiente, que
tem uma das vistas mais encantadoras da cidade:
o Pão de Açúcar. Pelos cômodos,
circulam, um tanto desconfiados, quatro gatos
siameses de cor acinzentada: Linda, Sansão,
She e Filha da Mãe, que ganhou esse nome
incomum por ser a mais temperamental. Os bichos
de estimação, assim como a música
e a literatura, são os grandes companheiros
desta atriz, cantora e diretora, senhora de 83
anos e múltiplos talentos, que em 2005
brilhou com o espetáculo Bibi in Concert
III POP, visto por mais de 30 mil pessoas.
É o mais recente sucesso dessa grande dama
do teatro brasileiro, cuja trajetória honra
o legado do pai, o lendário Procópio
Ferreira.
No espetáculo, Bibi canta durante uma
hora e vinte, de pé, em cima de um salto
15 – que ela usa até em casa, para
disfarçar seu 1,57 metro de altura. A
memória, tão boa quanto na juventude,
lhe permite decorar todo o repertório,
que vai de Edith Piaf a Chico Buarque. “Ela
é o exemplo mais acabado entre nós
de um gênio, é uma instituição
cultural”, elogia Juca de Oliveira, que
teve quatro peças de sua autoria dirigidas
por ela. “Difícil encontrar alguém
tão dotado, com um talento enorme que
se multiplica em várias direções.”
Ele tem razão. Em 65 anos de carreira,
Bibi fez de tudo. Virou estrela aos 18 anos,
contracenando com o pai. Três anos depois,
já comandava sua companhia de teatro
e estreava no cinema como protagonista. Com
menos de 25, começou a se destacar como
diretora – e hoje tem no currículo
espetáculos tão diversos quanto
a ópera Carmen, de Bizet, e
shows de Maria Bethânia.
Nos anos 50, Bibi reinventou o teatro de revista
no Brasil e na década seguinte fez sucesso
ao apresentar programas na tevê e dar
início aos grandes musicais. Estrelou
Gota D’Água, de Paulo
Pontes e Chico Buarque, e arrastou multidões
aos teatros cantando Edith Piaf e Amália
Rodrigues. “Bibi é uma atriz de
recursos absolutos, a melhor que temos no País”,
reforça Juca. “Além de ser
uma excepcional intérprete: cantora popular
absolutamente fora dos padrões, que opera
muito bem no canto lírico.” A versatilidade
da artista que canta, dança, representa
e dirige reflete-se em sua vida, seus gostos.
Hoje, repousa na cabeceira de Bibi – ler
antes de dormir é um hábito –
o primeiro volume do clássico Os Thibault,
de Roger Martin du Gard. Mas ela é capaz
de devorar com igual interesse best-sellers
da atualidade: os livros de Dan Brown, autor
de O Código Da Vinci, e as aventuras
de Harry Potter.
“Gosto de tudo que se torna popular”,
explica. Como ela própria. Fora da tevê
há 25 anos, nunca deixou de sentir na
rua o carinho do público, como se fosse
estrela da novela das oito. Repetiu o exemplo
do pai e foi enredo de escola de samba. Desfilou
na Viradouro em 2003, ovacionada nas arquibancadas,
que gritavam seu nome em coro. Recebe e-mails
do mundo todo e tem até comunidade no
Orkut, com centenas de associados. Embora ache
a internet fascinante, não deixou-se
seduzir. Prefere os meios convencionais de comunicação:
o telefone, as cartas, o telegrama – seu
favorito. A preferência tem razão
de ser. Econômica nas conversas, Bibi
é sucinta também nas palavras
escritas. Escrever não é seu forte,
prefere ler, tocar piano sem platéia,
ou assistir a filmes comendo jujuba, acompanhada
de seus gatos.
Ter prazeres tão individuais, porém,
não significa que Bibi seja uma mulher
solitária. Faz questão de ter
a única filha, Teresa Cristina, 50 anos,
os dois netos e os dois bisnetos sempre por
perto. São tradicionais os jantares de
domingo, nos quais reúne também
os amigos. Contudo, embora defina-se como uma
“atleta da palavra”, não
gosta de conversar. Longe da ribalta, prefere
calar. “Talvez eu não seja curiosa
o suficiente para saber o que as pessoas querem
me dizer”, admite. De um companheiro,
assegura não sentir falta. Depois de
dois casamentos e quatro “ligações
amorosas”, mostra-se conformada com a
previsão pessimista de que não
viverá outro amor. Futuro traçado
pelos homens e vislumbrado aos 78 anos. Foi
nessa época que Bibi percebeu que eles
já não a tocavam mais, já
não a encaravam da mesma maneira e desapareceram.
“Percebi que a velhice tinha chegado por
causa dos homens.”
Por um lado, sentiu alívio. De se ver
livre do ciúme e da insegurança
exagerados que a dominavam quando se apaixonava.
“Por minha culpa, nunca fui feliz no amor.
Bota do meu lado um camarada de quem gosto que
fico burra, cretina, ciumenta, insuportável.”
Mas sofreu com o baque de conceber a vida sem
sexo, mesmo admitindo que hoje não teria
mais coragem de se desnudar. Para uma mulher
da década de 20, ela fala do assunto
com surpreendente desenvoltura. “Pensar
que ninguém mais vai me dar um beijo
na boca, me segurar num abraço e me olhar
nos olhos... Embora não seja mais importante
que comida, sexo é importante sim.”
Bibi não se deixou abater. Reagiu investindo
toda a energia no trabalho. Uma energia pouco
usual para quem tem 83 anos. “Sou uma
pessoa fora do comum. Com a minha idade, fazer
tudo que eu faço nesse show não
é normal”, afirma.
Parar não faz parte dos planos enquanto
a saúde continuar jogando a favor. Mesmo
com seu nome gravado na história da dramaturgia
brasileira, Bibi ainda depende do trabalho para
sobreviver. Com orgulho. No próximo dia
18, o ritual se repetirá: uma banana
bem mastigada duas horas antes e manteiga derretida
dentro do café vinte segundos antes de
respirar fundo e subir ao palco, montado no
Jardim Botânico de São Paulo, onde
vai cantar Piaf acompanhada da Orquestra Sinfônica
paulista. Em janeiro, volta ao Teatro Frei Caneca
para mais uma temporada de Bibi III.
Em março, lança um CD de tangos
com o maestro Miguel Proença. E, em 2007,
quer voltar a encenar uma comédia. A
cristaleira abarrotada de prêmios, meio
escondida na penumbra do escritório,
um pouco desorganizada em contraste com a biblioteca,
dá a perfeita noção de
que prêmios não são o motivo
pelo qual Bibi continua cheia de planos. Seu
maior combustível é, na verdade,
o aplauso. |