Maria Lins - O protagonista de 'Quebrando o Tabu' é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com quem a gente conversa agora. Presidente, é um prazer receber o senhor aqui no Terra, muito obrigada pela presença.

FHC - Eu que tenho que agradecer a oportunidade de conversar aqui com vocês, por intermédio do Terra, com tanta gente.

Maria - Participa da entrevista o jornalista Bob Fernandes, editor-chefe do Terra Magazine. Bom ter você aqui também, Bob.

Bob Fernandes - O prazer é meu, Maria.

Maria - Presidente, a gente anunciou a entrevista e recebemos, só para o internauta ter uma ideia, olha a pilha de perguntas, a gente escolheu algumas para fazer agora ao longo da entrevista, e vamos encaminhar todas as outras à sua assessoria. Vamos começar falando um pouquinho do tema do filme, do nome do filme, 'Quebrando o Tabu'. Quais são os grandes tabus, os grandes mitos que envolvem a maconha?

FHC - A maconha não, todas as drogas. Em primeiro lugar, o que as pessoas pensam que droga é com os outros e quem resolve isso é a polícia. Ora, a droga, e o presidente Clinton disse com clareza, está na casa das pessoas, e querem fechar os olhos - não dá para fechar os olhos. Segundo, a ideia de que todas as drogas são iguais não é verdadeira. Elas têm efeitos diferentes, depende também das pessoas, das situações, não dá. Terceiro, de que é possível resolver essa questão fazendo uma campanha para a guerra às drogas. Olha, nós estamos assistindo 40 anos de tentativas de eliminar a produção de drogas, e, enquanto não se diminui a demanda, a procura, o consumo, não tem jeito. Eu estive recentemente, há uns dois anos, conversando com o principal chefe da repressão na Colômbia e ele me disse, "olha, aqui nós estamos matando muito traficante, nós não estamos acabando com o tráfico, nem com a produção, porque para cada um que morre, vem outro, porque é tão lucrativo, que as pessoas vão lá". Então nós propusemos desde essa ocasião, quando eu fiz um relatório sobre a situação das drogas na América Latina, a mudar o paradigma. Quebrar o tabu, que é quebrar aquele "não é comigo", é, é com todo mundo. Segundo, o "é a polícia que resolve", não é. E uma política de guerra às drogas acabando com a produção, não: vamos mudar o paradigma para olhar o consumo. Quer dizer, a prevenção, é um caso de saúde, sobretudo no que diz respeito aos dependentes químicos, é caso de saúde e não de polícia, e é preciso, portanto, mudar o enfoque geral do combate às drogas.

Maria - Evas Corrente, assim como dezenas de internautas demonstram nas perguntas, diz que a maconha é a porta de entrada para outras drogas mais pesadas. Esse é também um dos tabus, um dos mitos?

FHC - Olha, eu não sou médico, mas eu procurei me informar e o último relatório que preparamos, uma comissão global sobre drogas, é muito detalhado nas informações e não há comprovação disso. A ideia de que de uma droga você vai para a outra não é comprovada. O que é certo é que quando a droga está na mão do traficante aí vai de uma droga a outra. A pessoa vai buscar maconha e o traficante e o traficante ganha mais na cocaína. E ele empurra para a cocaína. Então, o que tem que quebrar é o elo com o tráfico, quebrar o elo com o mercado negro, porque é isso o que induz a ir de um lado a outro.

Bob - Presidente, tem uma pergunta que o senhor já respondeu inúmeras vezes, de formas variadas, mas eu quero ver se eu consigo colocá-la num contexto maior, até para explicar. Quando o senhor era presidente da República, o senhor chegou a ter um secretário-nacional antidrogas, Walter Maierovitch, que tinha uma posição muito próxima, muito parecida com a do senhor hoje, e o senhor tinha na época uma posição absolutamente contrária. Ele defendia mais ou menos uma posição dos países europeus, digamos, progressistas, e o senhor, à época, estava mais próximo da posição americana. Qual é o contexto geopolítico que obriga um presidente da República - não só o senhor, como o presidente Bill Clinton, que está no filme agora - a tomar aquela posição e não a de hoje ou o senhor não tinha a clareza também?

FHC - Eu não tinha a clareza também. Quer dizer, eu também acreditava, por exemplo, que erradicando a maconha fosse possível ter algum efeito. E nós tentamos. O General Cardoso, que era o encarregado disso no chamado Senade - Secretária Nacional de Antidrogas -, também acreditava. Se bem que nós acreditávamos também que precisássemos fazer a prevenção, e foi feito, já que o Cardoso era muito devotado à prevenção. Mas lá no Quadrilátero da Maconha, em Pernambuco, duas vezes aquilo foi queimado e não adianta nada...

Bob - Mas o programa, que deveria fazer um acompanhamento via satélite, foi interrompido.

FHC - Foi. Acontece que essa questão, naquela época, a pressão era muito forte num outro sentido. Não se esqueça que os americanos estavam preparando a questão da presença militar mais forte na Colômbia - e nós nunca aceitamos essa posição do comando americano supervisionar tudo. Isso deu um trabalho imenso àquele General McCaffrey, o chamado "Czar da Drogas", que tinha sido comandante do Atlântico Sul - ele chegou a vir ao Brasil e conversou com o General Cardoso, porque nós não aceitamos participar de uma coisa conjunta...

Bob - Então posso inferir que o senhor, na verdade, para não ter que cooperar com a posição mais dura e mais intervencionista ainda, preferiu ficar pela metade do caminho?

FHC - Eu não sei se eu tinha tanta consciência na época, mas na verdade houve isso. Na época eu tinha menos consciência do que tenho hoje, até porque o problema era menos dramático no Brasil: a violência não estava tão forte aqui, nem o Brasil consumia tanta droga, foi numa crescente. (na época) Parecia que era um problema da Colômbia, nós víamos assim, o Brasil não é produtor, não é nada, é só usuário eventualmente e tal. Não é verdade, nós hoje somos um corredor importante e de grandes consumidores de droga. Na época não era.

Bob - Mesmo a questão da cocaína, tem uma coisa que desde aquela época se colocava, os países que produzem insumo, éter, acetona, são o Brasil, os EUA...quer dizer, os que fazem (a cocaína) têm que comprar (essas matérias-primas) de alguém...

FHC - Claro, disso não há dúvida. Agora, o contexto era esse, inclusive nós tínhamos muita dificuldade porque os americanos queriam fazer um plano e nós éramos contrários à presença de tropas americanas na América do Sul, mesmo na Colômbia, por várias razões óbvias.

Bob - Então você teve que ceder um pouco para não...

FHC - Eu não digo que é ceder, porque nós não tínhamos essa consciência, estávamos dizendo o seguinte, "nós vamos fazer a nossa política", e a nossa política nacional de drogas no Gabinete da Presidência era, o Brasil está prestando atenção no assunto. Aí, o General Cardoso tinha esse ponto de vista de que era preciso ter muita prevenção. O maior ouvinte entrou em choque com a Polícia Federal.

Bob - Mas aí tem uma outra questão, presidente, e isso por acaso eu sei porque à época eu escrevia muito sobre isso, como existia uma questão econômica e de crise, etc., a Polícia Federal estava habitada, sendo paga por gente da DEA...

FHC - Mas nós acabamos com isso, é verdade isso, mas nós acabamos com isso. Havia um convênio anterior a mim da DEA...

Bob - O CDO foi criado no Governo Sarney com dinheiro americano...

FHC - Foi e com dinheiro pouco... Bob - Merreca.

FHC - Ridículo, bobagem. Mas era muito mais para dar um sinal de que estávamos preocupados, mas nós acabamos com o convênio entre a Polícia Federal e a DEA, porque é um absurdo.

Bob - Mas a queda do Sherlote se dá exatamente por uma briga interna, CIA e DEA.

FHC - Exatamente, exatamente. E ninguém nem percebeu isso, mas era isso, e na verdade acabamos com a ligação entre a Polícia Federal e DEA. Ainda bem. Agora, até hoje o Brasil não tem muita clareza, e eu não estou falando do Governo só, o Governo também...

Bob - A sociedade.

FHC - A sociedade. E o Governo não pode fazer nada sem a sociedade, porque isso é muito arriscado, você dizer, "olha, precisa mudar o paradigma". Isso pode ser lido de várias maneiras, (de as pessoas pensarem) "ah, querem a droga livre". E que Governo aguenta isso? Por isso esse filme 'Quebrando o Tabu' é importante, o mérito é do Fernando Grostein que teve a persistência de fazer com a equipe dele, mas eu acho que importante esse filme porque faz as pessoas começarem a pensar...não está na hora de o Brasil tomar medidas de Congresso legislativos, porque é extemporâneo ainda, é cedo...

Maria - Tem que abrir a discussão.

FHC - Não vai tomar e se tomar vai tomar medidas duras...

Bob - E piores.

FHC - Piores, porque não tem condição política...

Bob - Aliás, o senhor, no seu Governo, o Congresso votou a lei, até com rapidez, que criminalizava a droga. Depois o Lula manteve, embora tenha tirado da cadeia o usuário, mas manteve a mesma lei que é criminalizante.

FHC - Provavelmente, deve ser esse misto de não ter percepção real da situação e, ao mesmo tempo, a maré é tão forte quanto...

Bob - Condição política.

FHC - Você tem que ter condição política. Então é o momento agora de criar condição política na sociedade, chamar a atenção, discutir, debater. Eu acho que há leis, por exemplo, o (deputado federal pelo PT) Paulo Teixeira tem uma lei lá que precisa ser conhecida, mas não deve, ao meu ver, ser votada agora, porque se for votada agora vai perder (o político quer descriminalizar de vez o uso da maconha, inclusive, passando a permitir o plantio para o usuário).

Maria - A gente vai entrevistar o Paulo Teixeira nesta sexta-feira (30) aqui no Terra, que tem um projeto que inclusive regulamenta a maconha.

Maria - Presidente, desde que o senhor falar sobre uma política mais flexível em relação às drogas, de onde partiram as maiores críticas e também os maiores apoios. A gente tem uma série de internautas aqui, como, por exemplo, o Déli Mozart da Silva, de 53 anos, aqui de São Paulo, que pergunta se o senhor não teme uma reação negativa em relação à sua pessoa a partir do momento em que o senhor começou a discutir esse assunto, e também o Luis de Souza, de 72 anos, também da cidade de São Paulo, que acha que o melhor que os senhor faria era fazer um alerta a respeito dos perigos da droga e não falar em regulamentação da maconha, por exemplo.

FHC - Bom, veja a idade, os dois com mais de 50 anos. Os mais jovens têm uma opinião diferente porque eles sabem que a droga está muito expandida aqui e alguns defendem até a liberação da maconha. Eu não temo nada, não, pelo seguinte, o que estou fazendo é com boa-fé, com consciência do que estou fazendo, e eu não estou propondo nada que não seja a diminuição no risco da droga...o modo atual não dá certo, pela violência não vai, tem que ser pelo convencimento, pelo alerta e pelo tratamento de saúde. E não adianta botar na cadeia as pessoas, porque na cadeia vão aprender não só o uso de outras drogas, como mais crime. Então, eu sou favorável à descriminalização do uso de qualquer droga. Quer dizer o seguinte: o usuário não vai para a cadeia. Isso não quer dizer que eu seja favorável ao uso de droga ou à liberação das drogas, é, se a pessoa é usuária, não vai para a cadeia.

Bob - É doente.

FHC - É doente.

Bob - Tem que ser tratada.

FHC - Isso se for dependente.

Maria - Dependente, não usuário.

FHC - Dependente. Agora, veja, uma coisa que eu digo sempre que é simples: se você tomar uma cachaça antes de comer um leitão é normal. É regulamentado, todo mundo faz ou a maioria - tem pessoas que não podem, a saúde não permite, não gosta e tal, mas, se fizer, não é grave. Se a pessoa levanta de manhã e pede uma cachaça, meu Deus...

Bob - Ou toma a cachaça inteira e esquece o leitão (risos).

FHC - Esquece o leitão, então, aí é grave. Depende do uso. A sociedade regula, não é só a lei que regula. O álcool faz muito mal, todo mundo sabe disso. O cigarro faz muito mal. A Ruth Dreifuss, nesse filme nosso, ela diz uma coisa muito importante - ela foi ministra da saúde - e também a (Gro) Brundtland, que foi primeira-ministra da Noruega e diretora-geral da OMS, o serviço da ONU à saúde, ela diz, "olha aqui, por que eu não digo para proibir o cigarro?", ela é contra o uso do cigarro... Bob - Porque cria um tráfico.

FHC - Cria um tráfico. Então, regular, quer dizer...

Maria - Teve até a Lei Seca nos EUA, que não deu certo.

FHC - Não deu certo. Quer dizer, o cigarro, antigamente, há dez anos, todo mundo fumava em qualquer lugar. Hoje não pode mais, está diminuindo, está diminuído fortemente...veio campanha para dizer que o cigarro faz mal. Por que não fazer a mesma coisa com todas as drogas, principalmente com a maconha - "olha aqui, cuidado, hein? Você pensa que a maconha não vai te fazer mal, mas pode fazer mal. Você toma maconha todo dia, vai te fazer mal. Vai ter problemas psicológicos e tal, pode te afetar". Mas não pode fazer uma propaganda mentirosa. (o escritor) Paulo Coelho disse com muita clareza isso: "não adianta dizer, 'a droga é ruim', a pessoa prova e acha que é bom". Tem que dizer, "olha, se você continuar provando é o "beija-sereia", é uma maravilha, mas te leva para o fundo do mar. Te mata".

Bob - O senhor percebe que, vendo as vastas porções de brasileiros que o apoiaram, o apóiam, a sua presença, acima de outros presidentes que tiveram uma posição oposta a essa, ajuda a quebrar essa reação inicial tão grande que é a droga?

FHC - Eu acho que sim, ajuda, sem dúvida. Até porque nós temos sido francos, não é? O Clinton foi muito franco. Eu não pensava assim, não tinha essa noção. Eu era vítima do tabu também, e vários presidentes...

Bob - O senhor era vítima do tabu da droga.

FHC - Isso. Olha, eu não fumo, eu comecei a...mesmo bebida, eu bebo pouco, vinho...meu pai era militar, general e tal...lá em casa, esse negócio de álcool...as pessoas não acreditam, mas eu não tenho nenhuma vinculação com esse tipo de comportamento. Mas a minha visão era então o que, era mais fácil para eu dizer "isso é horrível". Maria - Agora, o senhor falou que nunca fumou, no caso nunca fumou cigarro.

FHC - Cigarro nunca.

Maria - Pois é. E vários internautas, como o Carlos Falques, que pergunta se o senhor já fumou maconha, se já tragou, se já sentiu o efeito da droga e se recomendaria a uma filha?

FHC - Não, eu não posso dizer que senti o efeito de droga...eu já contei isso um milhão de vezes...

Bob - Aliás, ajudou a perder uma eleição esse assunto, para a Prefeitura de São Paulo.

FHC - Eu estava em Nova York, num bar, PJ Clarkes, com parentes meus - na época, gente muito bem posta na vida -, e passaram um cigarro de maconha, e eu não sei tragar, eu nunca fumei, então tragar...eu não sei o que é isso. E eu achei o cheiro horrível. Minha mais próxima ligação com a maconha foi essa, nunca mais. Quer dizer, não é por isso, não é pela questão pessoal. Eu comecei a me preocupar com essa questão da droga por uma questão que parece abstrata, a democracia, porque como eu tenho muita ligação com a América Latina - Colômbia, México, agora América Central -, a tragédia que a guerra às drogas está causando...

Bob - México está desmanchando...

FHC - México e a América Central. A Colômbia se preparou anos e aprendeu a combater e tal, com forças especiais...reduziu até mesmo um pouco o plantio, não muito, não conseguiu reduzir a quantidade de oferta, não conseguiu, desbaratou toda a guerrilha e tal, mas o México não estava preparado para isso e entrou numa guerra que é uma loucura. As projeções são que ao final do Governo (Felipe) Calderón, que é um Governo bem intencionado, 50 mil pessoas estarão mortas nessa guerra infausta. Na América Central, aquelas gangues que foram treinadas nos EUA, de imigrantes jovens que voltaram para os seus países e tal, estão tomando conta. Quer dizer...o Haiti, até mesmo Santo Domingo, então eu digo, olha aqui, isso aqui está minando a crença nas autoridades, na instituição, na democracia e na liberdade. Estamos caindo na mão de bandidos. Agora, não é só lá, não. No Rio, agora, atuaram, o Governo agora tem atuado lá no Rio, mas até bem pouco...

Bob - É pouco diante do...

FHC - É pouco, é pouco...

Bob - São 1.020 comunidades, sendo que 500 têm o problema e você tem 23 UPP (Unidade Pacificadora Móvel).

FHC - Mas é melhor ter 23 do que zero.

Bob - Claro.

FHC - O que acontece é que o controle territorial é feito pelos traficantes.

Bob - Salvador também agora.

FHC - Salvador também. Olha, eu estive na Palestina, estive na Cisjordânia, estive em Rammalah, em Israel, mais de uma vez - eu pertenço a um grupo chamado Elders, são dez pessoas, (grupo que) o (Nelson) Mandela criou, com o Kofi Annan (secretário-geral da ONU entre 1997 e 2007), o Jimmy Carter, a Gro Brundtland -, então fomos lá...aqui na favela, o controle territorial é maior do que lá, ou igual, porque lá também tem Checkpoint (acesso à fronteira). Se você vai visitar uma favela de um inimigo, ele pode te matar, pode cortar sua mão, então, é loucura, a lei que tem na comunidade, como eles chamam, não era a nossa lei. Você pode falar de democracia quando você não tem direito de se movimentar livremente, está controlado por bandido? Você pode falar de democracia na América Central quando tem isso? Então, foi a partir daí que falamos, "temos que ver o que está acontecendo, isso está dominando a sociedade".

Maria - E ainda há pouco você citou a Ruth Dreiffus, e ela dá um depoimento, que é muito interessante, falando que é muito melhor ver um jovem que a gente ama indo comprar, por exemplo, maconha em um lugar regulamentado do que indo comprar da mão de um traficante, e um internauta Diogo Neves Régis, de 28 anos, de Brasília, ele conta a seguinte história, presidente: "tenho um amigo meu que começou a usar crack. Conversando com ele, descobri que entrou para o mundo do crack por meio de uma coisas que chama "crackonha", que é uma mistura de crack com maconha.

FHC - Pode acontecer. É o que eu disse, vai lá para o traficante, acaba indo de uma droga para a outra. Quer dizer...eu vi na Holanda coisas terríveis, que a gente se choca, tem lugares lá que você pode chegar lá e ter acesso...

Bob - Café.

FHC - Não, o café é para maconha. Pode ter acesso para heroína...

Bob - Como já teve na Suíça, uma época.

FHC - Na Suíça teve e não deu certo.

Maria - O Parque da Agulhas, tiveram que fechar.

FHC - E a Ruth Dreyfus explica bem por que não deu certo. Mas na Holanda tem locais em que você vai lá, e como os holandeses têm uma noção de que cada um decide o que quer, a pessoa que está lá tomando conta, e os médico lá, não pressiona a pessoa a não se viciar, está apenas dando condição de segurança...

Bob - De saúde.

FHC - De saúde, de saúde. É chocante ver aquilo, mas você entende... Bob - Redução de dano.

FHC - Redução de danos. Por outro lado, eu vi nos colégios da Holanda - fui a muitos colégios - o desinteresse do jovem pela maconha, porque, como ele tem o coffee shop para comprar, não é mais problema. O problema deles é outro: eles têm menos acesso ao álcool do que à maconha, então o problema deles é o álcool. Agora, aqui em São Paulo, está tendo uma campanha contra o álcool, e o álcool causa danos maiores até ou tão grandes quanto...

Bob - Maiores...o álcool, os técnicos da seleção brasileira, os últimos todos, e os craques, fazem propaganda durante a Copa do Mundo...

FHC - Isso não pode. O cigarro, por exemplo, foi glamourizado por muito tempo, e, até certo ponto, a droga foi também glamourizada, então precisamos acabar com esse glamour. Esse é o alerta que se pede, que deve ser feito mesmo. Virar e dizer, "a droga não causa dano", causa. Causa. Agora, não está resolvendo esse dano você colocar na cadeia, usar da violência - está aumentando - e fazendo de conta que não está havendo uso da maconha, porque está havendo.

Maria - O Fernando Andrade, diretor do documentário, disse que você vê muitos meninos no colégio traficando maconha, mas você não vê eles traficando álcool ou alguma bebida alcoólica para dentro do colégio, então, isso faz todo o sentido.

FHC - Eu acho que é o Dráuzio (Varella) que diz uma coisa muito interessante também no filme, que, no fundo, como é proibido, a pessoa que vai à comunidade para obter a droga, ela traz um pouco mais para dar para os seus amigos. Então, ele se torna de alguma maneira um traficante, participa do processo.

Bob - Presidente, eu não sei se chegam a dizer isso para o senhor, mas eu imagino que a um ano da eleição municipal em 5.600 municípios, eu imagino o que o pessoal do PSDB está lhe dizendo sobre sua presença nessa...

FHC - Eles não dizem nada, porque não têm coragem de dizer. Mas estão pensando...(risos)

Bob - Mas você imagina que eles estão dizendo, "ó, boca pequena"...

FHC - Mas eu faço o seguinte, como estou bastante afastado do cotidiano da política partidária e de qualquer política desse tipo, não causa redução de danos...eu já tenho mais de 80 anos, eu digo o que eu penso, o que acho que seja bom para o Brasil, para as pessoas. Estou pouco ligando se as pessoas vão me julgar por este ou por aquele jeito, já passei dessa época. Eu sei que algumas pessoas ficam assustadas, mas nós temos cuidados, e o cuidado qual é? Não pode misturar política com essa campanha, não pode. Ainda no Brasil, algumas pessoas do PT têm uma posição aberta...o Paulo Teixeira, o Tarso Genro também tinha...eu acho que o Ministro da Justiça atual também tem...eu não sei a presidente...

Maria - O senhor teve a oportunidade de falar com a presidente sobre esse assunto?

FHC - Sobre esse tema, não. Mas eu mandei o filme para ela, através do Ministro da Justiça. Eu entendo a posição...quem é presidente tem muito mais restrições. Eu não vou pedir à presidente que ela opine, não pode, não pode.

Maria - Agora, de qualquer jeito, é uma discussão suprapartidária.

FHC - Ah, não tenha dúvida. Tem que ser suprapartidária.

Bob - Até por que é hipócrita.

FHC - É hipócrita.

Bob - É hipócrita. Tudo isso aí é uma hipocrisia monumental que as pessoas usam, compram e faz de conta que não. FHC - Mas tem que ser suprapartidária, não pode ser usada...porque, senão, vai dar o que: a gente viu na última eleição, as pessoas todas correndo para as posições...

Bob - Para as piores posições...

FHC - Às quais não acreditam. Os dois lados, ou os três lados. Então é melhor separar essa discussão da política partidária.

Maria - Já chegou a ser discutido, inclusive na época da eleição, até por conta da entrada da candidata Marina Silva na disputa, e ela tinha uma posição pessoal muito diferente da do Partido Verde em relação à maconha, em relação também ao aborto e etc., e ela, na época, dizia que a solução seria fazer um plebiscito, um referendo. O senhor acha que seria bom fazer isso?

FHC - Não, não acho.

Maria - A população não deveria opinar, por exemplo, sobre a regulamentação da maconha?

FHC - Não acho, porque o resultado seria imediato, acabar com tudo, maconha, álcool, droga, comida, tudo...

Bob - Parlamentarismo...

FHC - Parlamentarismo...então não dá. Esse é um tipo de tema que não deve ser submetido a um sim ou não. E a questão deve ser encarada com nuances, não é sim ou não. Uma coisa já é dizer "descriminalizar", que já confundem com "legalizar", não é, é não botar na cadeia. Outra coisa é regulamentar, outra coisa é dar liberdade.

Bob - Objetivamente, até para a pessoa que está em casa entender, o que é regulamentar na prática? É como com o álcool, que não se pode vender para menores de 18 anos? FHC - É isso. E isso depende de duas coisas: depende de lei e depende da sociedade também. O problema é que a sociedade não tem clareza...

Bob - E a depender da região do País muda...

FHC - Muda muito...da idade muda muito, do tipo de classe social, tudo isso muda muito. Mas a regulamentação implica em dizer, não pode isso, não pode aquilo, o que pode, o que não pode...

Maria - Seria o mesmo status de cigarro e álcool na sociedade hoje, que você tem aí idade para consumir...

Bob - Seria meio que a mesma coisa...

FHC - No caso da maconha. No caso das outras drogas, é difícil que alguém diga que deva regulamentar e dar liberdade, porque elas são muito mais nocivas do que a maconha.

Maria - Agora, presidente, vários internautas aqui no nosso chat, pessoal que está assistindo ao vivo pelo Terra, querem saber como funcionaria o mercado regulado da maconha? Quem produziria essa maconha?

FHC - Esse é o ponto. Por que não fomos além de uma coisa muito genérica? Porque é muito cedo. Quer dizer, não se sabe como fazer isso. Veja, eu não sei se aparece no filme, mas eu participei de uma discussão lá numa comunidade do Rio, com o pessoal do Afro Reggae, e havia 10 pessoas lá metidas em violência, uns foram para a cadeia, mataram e tal e coisa. E entrou essa discussão, como é que faz? E um deles disse, "olha aqui. Eu até sou favorável a acabar com a proibição, mas eu não quero que a Coca-Cola, a Antártica ou sei lá quem vá distribuir a droga". Enfim, tem um problema complicado. Se for o caso, quem faz isso? Quem produz? Não é simples.

Bob - Que, aliás, é um problema da Holanda, porque a Holanda não controla a produção. FHC - Não controla. Eu conversei com o responsável pela questão na Holanda e ele me disse o seguinte: "é melhor resolver metade do problema do que nem a metade. Qual é a metade? O acesso à maconha em certas condições é possível, a produção, não". Então, necessariamente, tem uma hipocrisia aí, porque aquele coffee shop que está lá oferecendo legalmente a maconha, está comprando ilegalmente, e é reprimido na Holanda. Então, o filme mesmo mostra isso, cultivam maconha nos apartamentos, mas cultivam os bandidos, os traficantes, vamos dizer assim. Não foi resolvido isso.

Bob - O senhor acha que o cultivo privado é uma solução?

FHC - O cultivo pessoal eu acho que é um caminho. Você sabe o que está acontecendo? Nos EUA, na Espanha, na Europa, eles estão permitindo o cultivo privado. Para o uso privado. E, nos EUA, em muitos Estados já está havendo uma flexibilização disso. Mas, veja, por enquanto isso ainda é um pouco o limite entre o legal e o ilegal. Por que o limite? Porque ninguém tem muita consciência, noção, do que pode acontecer. Então isso são matérias que precisam de um pouco mais de experimentação.

Bob - Presidente, o mundo está quebrando. Todo mundo sabe por que está quebrando e não conseguem tomar uma atitude para mudar isso, imagine em relação a esse outro tema.

FHC - Exatamente. E é duro, não é? Mas aqui, você vê, nós estamos mostrando vários tipos de experimentos. Portugal tem um experimento interessante: eles descriminalizaram todas (as drogas).

Bob - O que, aliás, chegaram a conversar por aqui na época de implantar as leis juntas nos dois países?

FHC - Sim. E lá funcionou.

Bob - Caiu a criminalidade...

Maria - Caiu também o uso, o consumo... FHC - Mas tem o seguinte: lá, a droga chefe é a heroína, aqui, a cocaína. A heroína tem a metadona, que pode ser usada para substituir a heroína nos hospitais, e lá em Portugal deram acesso livre, eu vi isso, as pessoas vão lá pegar a metadona, tudo bem. Também, a heroína é como a maconha, a pessoa fica mais desanimada. A cocaína excita e é mais violenta. Em Portugal, não há o nível de pobreza que tem aqui, não tem o nível de violência que tem aqui, então você não pode dizer, "deu certo em Portugal, vai dar certo aqui".

Bob - Tem 10 milhões de habitantes.

Maria - Agora, de qualquer jeito, presidente, essa é uma política que tem de ser flexibilizada mundialmente? A gente tem um internauta aqui, o Alexandre Cavalcanti Botelho, de 27 anos, de Sobradinho, no Distrito Federal, ele disse que trabalhou no Ministério da Justiça, que todo mundo lá viu o filme, fizeram uma grande discussão, e que no final houve uma dúvida a respeito do tráfico. Será que acabaria com o tráfico e os traficante uma vez que os outros países da América do Sul continuariam a fazer e a produzir o tráfico das drogas?

FHC - Por isso nós fizemos nosso relatório dirigindo-o às Nações Unidas. O último, que a Comissão Global de Drogas fez - que é uma comissão que lá o Kofi Annan, gente que foi presidente do FED nos EUA, um ministro da fazenda cuja gestão foi em um Governo bem reacionário nos EUA, são membros dessa comissão -, e nós mandamos ao secretário-geral da ONU pedindo que ela a ONU a sua posição. Os EUA forçaram a ONU a ter uma posição "drogas zero", eliminar a produção completamente. Então, a ideia você realmente contaminar esses países. Na verdade tem que mudar os EUA.

Bob - Presidente, mas aí tem um problema...claro, é melhor fazer algo do que não fazer nada, mas essa lei, de Nova York, é de 1964, e você só pode mudar a lei com o apoio de todos os países, então... FHC - É complicado, é muito complicado. Bob - O Irã, a Coréia, ... FHC - A Rússia também se opõe... Bob - E o mundo árabe... FHC - Também se opõe. É muito complicado. Então, é melhor...provavelmente não vai resolver o problema, mas vai diminuir...aqui, no Brasil, a lei não põe na cadeia já o uso. O problema é que a lei não é precisa, e a polícia pode dizer, "não, você não está usando. Para mim, você é contrabandista, você tem mais do que o uso pessoal". Aí o juiz vai lá e condena, e eu vi lá com o Dráuzio (Varella) aqui em São Paulo, 3 mil mulheres presas, 80% por tráfico - porque não pode botar na cadeia por uso, então eles põem por tráfico. Aí você fica 5 anos na cadeia, aprende outras drogas, sai, passa um ano fora, cai de novo, porque, quando ela sai, a mulher não tem outra ocupação, não dão emprego a ela. Então é a tragédia se repete, se replica, se replica...se der para melhorar no Brasil, então, vamos melhorar no Brasil. Bob - E discutir com a ONU é isso, não é? Maria - Uma forma de começar a se flexibilizar não seria permitir o uso da maconha para fins medicinais?? Muitos internautas levantam essa questão. FHC - É, eu acho que sim. É o que está havendo nos EUA. Mas é um pouco hipócrita também, porque o médico passa a prescrição sem que haja a necessidade de usar. É um pouco por baixo do pano também. Bob - É um habeas-corpus. FHC - É. Para fim medicinal, claro que é óbvio que é uma coisa que é mais fácil de você, digamos, entender que para fim medicinal pode. Quer dizer, para um tipo de câncer, dores, não sei o quê...aí tudo bem. Mas na verdade tem um limite que...

Maria - Agora, por exemplo, o psiquiatra Dartiu Xavier, que a gente entrevistou aqui no Terra ao longo desta semana de exibição do 'Quebrando o Tabu', disse o seguinte: para contrapor essa ideia de que a maconha é a porta de entrada para as outras drogas, ela pode ser também a porta de saída, porque houve uma experiência grande com usuários de crack que conseguiram deixar o crack usando maconha e depois ainda deixaram a maconha também. Então ele brincou que é a porta de saída também...

FHC - Porta vai para um lado e vai para o outro. Os psiquiatras têm posições muito divergentes. Alguns, que têm uma posição muito mais fechada, que é "não", e isso é um psiquiatra, que tem uma posição mais próxima com a da Suécia...os nórdicos são muito duros em relação a isso.

Bob - Que criminalizam também.

FHC - Criminalizam e tal, e muito duramente, mas não tem efeito tão grande. Hoje, os países mais difíceis são os islâmicos, a Rússia, a Coréia e China. A China está começando a entender que tem de fazer alguma coisa, porque não é só a isso, ela leva também ao HIV, aumenta a Aids, por causa da contaminação...

Maria - Seringa...

FHC - Seringa. E a coisa americana era tão intransigente que eles não aceitavam nem a distribuição de seringas, nem isso. Agora houve uma pequena mudança nesse sentido. O debate tem também muito a ver com a difusão da Aids, vai ter até uma comissão mundial de Aids lá na ONU e esse também é um tema muito ligado com a droga - e você jogar a questão da droga, como estamos jogando, na lata de lixo é aumentar o número de aidéticos.

Maria - O filme também levanta a questão de que as drogas praticamente acompanham a história da humanidade, então não existe uma possibilidade de "droga zero" no mundo.

FHC - Não existe. Por que? Porque o ser humano é angustiado. Primeiro, porque tem a morte. Quem aceita a morte?

Bob - E mesmo na discussão da droga, quer dizer, as pessoas dão toneladas de Ritalin aos filhos e dormem tomando canhões...é droga. Quer dizer, o que é droga e o que deixa de ser droga?

FHC - Muitos remédios são drogas. Não se pode dizer que todos os remédios sejam assim, mas muitos são poderosíssimos. É muito difícil. E tem aquela coisa, por que as pessoas bebem ou fumam? Porque estão lá, encontram paz. E por mil razões, sociais, econômicas...e há angústias também, por exemplo, você vai morrer e não sabe quando. Bom, você pode ir para a religião. Ir para outro caminho, pode ser.

Bob - Algumas usam drogas...

FHC - Algumas usam drogas. Então você sempre tem esse lado transcendental, que tem alguma relação com a droga também. Tudo vai acabar, isso faz parte da condição humana, o que não quer dizer, então, libera, porque se liberar vai ser terrível. Tem que explicar, "cuidado, hein? Vai devagar".

Maria - Presidente, quase todos os estudiosos defendem que o lugar de quem usa drogas não é a cadeia. Mas, se referindo aos usuários, aos que usam maconha como pessoas doentes, não pode ser um desserviço o filme? Afinal, 'Quebrando o Tabu' não faz exatamente a distinção, a separação, entre esses dois personagens.

FHC - É verdade. E tem que fazer, eu acho que tem que fazer porque o dependente é, claramente, um caso médico. O usuário recreativo não é um caso médico, é aquele que está sujeito à regulação. Dependente está sujeito a hospital, e todo mundo concorda com isso, é uma distinção boa.

Bob - Mas o tamanho da hipocrisia, que me espanta, que vemos uma cidade como São Paulo, a menos de 3km de onde o senhor mora, por exemplo, você tem aquela multidão de pessoas usando crack. Daí se faz de conta que não existe uma coisa que existe?

FHC - É outro problema difícil, como é que se lida com esse pessoal? Não é fácil, o crack especialmente, porque o crack é devastador...e, eu vou falar outra coisa, mesmo em São Paulo, você vai em uma periferia como a da cidade, os traficantes têm um poder enorme. Houve um momento em que eles controlaram as vans do transporte...quer dizer, estamos lidando com assuntos espinhosos, que se opõem à regulamentação.

Bob - E é um poder econômico...

FHC - É um poder econômico que se opõe. O pessoal que trafica não quer saber disso, eles querem que continue como está, deixa como caso de polícia, deixa como caso de...

Bob - "Prefiro subornar a polícia a perder o negócio"...

FHC - Claro, do que perder o negócio. Então, a gente fecha os olhos também a esse respeito.

Maria - Presidente, o senhor viajou por dois anos pelo Brasil e pelo mundo conhecendo experiências mais flexíveis em relação às drogas, conversando especialistas, dependentes, usuários e ex-dependentes. De tudo o que o senhor viu e ouviu, o que lhe causou melhor impressão?

FHC - Melhor? Foi Portugal, porque eu acho que Portugal conseguiu um equilíbrio maior entre todos os outros países. Portugal conseguiu, na verdade, descriminalizar o uso de qualquer droga, oferecer saúde pública e ter programas preventivos. E reduziu. É um país onde o consumo da droga está diminuindo. Não resolveu, porque tem o contrabando.

Bob - Presidente, o senhor não sente uma certa dorzinha com o fato de esse programa de Portugal ter começado na mesma época que o Brasil ensaiou fazê-lo? Tudo bem, são tamanhos diferentes, são países diferentes, mas...

FHC - Eu nem tinha conhecimento disso naquela época, nem de Portugal...

Bob - Mas foi quando a Senade (Secretária Nacional Antidrogas) começou...

FHC - Mas eu não tinha...

Bob - Nem tudo chega (ao presidente)?

FHC - Não chega, eu não sabia, não é? Claro que se eu soubesse, provavelmente eu teria tentado. Isso se apresenta sob outros aspectos da esfera presidencial...

Bob - Chega via militar, por exemplo...

FHC - Ou policial. Não chega, enfim, como...nem era prioridade na época.

Bob - Foi o que eu imaginei. E aí os aspectos geopolíticos que envolvem também...

FHC - Isso. E encontrei tantas questões ao mesmo tempo. Naquela época, minha prioridade era a inflação e reorganizar o Estado. Também é preciso deixar claro aqui o seguinte: a quantidade de recursos que são usados na guerra contra as drogas é imensa. Nos EUA são bilhões de dólares. Eles mantêm 500 mil pessoas na cadeia por causa do uso de droga, 70, 80% maconha, quase todos negros. Bom, e o dinheirão que isso custa...e não usa para reduzir o dano, para fazer propaganda, para nada.

Bob - E com o fim da Guerra Fria, o combate às drogas aumentou, porque o FBI, a CIA, a DEA disputam verbas no Congresso no fim do ano e, para manter os seus empregos, eles criaram um novo inimigo... FHC - Exatamente. Eu estive numa reunião nos EUA, no Departamento do Estado - com várias ONGs e não sei o que lá - e era nítida a diferença entre as pessoas ligadas ao Departamento de Estado e ligadas à DEA, porque os da DEA não querem mudar...

Bob - É manter o emprego. Está disputando verba no Congresso.

FHC - Disputando verba no Congresso. E, por outro lado, a gente tem que entender que esse recurso, se fosse liberado, você poderia combater mais eficazmente o tráfico. Eu sei que é difícil, eles têm submarino na Colômbia para mandar droga aos EUA, que mais você quer? Quer dizer, é uma massa de recursos...não é só droga, é tudo. O Moisés Naim, que aparece no filme, tem um livro que eu gosto muito, chama-se 'Ilícito', que ele mostra que na década de 1990, quando a Globalização se tornou mais forte, o crime se globalizou. E todos os crimes: é a droga, o tráfico de mulheres, o tráfico de órgãos, de crianças, é a questão armas, é a questão atômica...quer dizer, tudo virou commodity. E o tráfico de drogas é parte disso aí. Quer dizer, se você tiver mais recursos para combater esse mundo ilegal...agora, não é só isso, tem outro lado para combater tudo isso que é atacando os paraísos fiscais. Como essas atividades movimentam esse dinheiro todo? É o paraíso fiscal.

Maria - É dinheiro que não acaba mais...

Bob - O senhor acha então que a forma eficaz para se combater tudo isso é atacar a veia econômica?

FHC - Também. Não só, mas também. Enquanto você tiver paraíso fiscal, não tem como controlar o movimento de dinheiro. Eles falam, "não sei quantos milhões é lavagem de dinheiro", mas como isso? É paraíso fiscal. Agora, quem está no paraíso fiscal? Todos, todos. Banco do Brasil tem, qualquer banco tem lá uma agência, qualquer grande empresa tem uma agência lá, porque esse é o coraçãozinho do funcionamento desse capitalismo maluco, especulativo... Bob - Ninguém quer deixar uns trilhõezinhos voando.

FHC - Ninguém quer deixar voando. Então por aí entra também a droga. E lavam dinheiro, constroem...agora mudou um pouco, mas você vai lá no Panamá, enormes hotéis vazios. O que é isso? Dinheiro de droga, não deles, mas de outros países que vão lá e põem. Como é que entra, como é que sai? Paraíso fiscal. Então, é muito complicado, não é uma coisa que você possa resolver assim.

Maria - A gente pode dizer que é uma discussão polêmica e é também apaixonada. A gente pode ver que dezenas de internautas, que estão aqui no chat, mandaram emails, muito elogiando o senhor pelo avanço, pelo progresso, outros dizendo barbaridades que não podemos nem repetir...

Bob - O senhor sabe que ganhou um apelido, não é? THC (risos).

FHC - Eu nem sabia o que era (risos). Agora você vê como é engraçado, os que são contra, agridem - e isso não me afeta, porque estou falando com sinceridade e acho que é o melhor para o Brasil e para as pessoas, e não tem nada a ver, pois sou contra, na verdade, o uso, acho que se deve fazer de tudo para não usar. Agora, de qualquer maneira, é sempre assim, são mais agressivos e não sei o quê. Os outros são mais compreensivos. Tem uma coisa idade também, os jovens são mais abertos do que os mais velhos.

Maria - Mas tem uma faixa quarentona que é muito conservadora em algumas opiniões também. A Maria, de 42 anos, que mora no Rio Grande do Sul, fala o seguinte: que ela teme, como mãe presente de uma adolescente, ela fica meio em pânico ao assistir personalidades tão influentes quanto o senhor afirmando que com a liberação da maconha os jovens passem a ter maior consciência e responsabilidade de escolha. Ela acha que isso muito difícil e teme que isso possa dar um passe-livre para o uso da droga.

FHC - Eu nunca disse isso, que a liberação vá dar consciência. Consciência não vem da liberação ou da não-liberação. Bob - Vem, inclusive, da conversa em casa com os pais.

FHC - Claro, a responsabilidade é dela, como mãe, de fazer com que a criança não pode, não deve, não sei o quê. Isso é fundamental, mas eu acho que a gente...

Bob - É delegar ao Estado uma função que é da família.

Maria - E às vezes à escola também...

FHC - E a escola tem que participar também, mas é a família quem tem de discutir isso. Olha, eu já disse um milhão de vezes...eu morei nos EUA, em 1971, na Califórnia, em Stanford.

Bob - Nossa, a nuvem já...(risos)

FHC - Eu era professor lá, na Califórnia, na Universidade de Stanford. Meus filhos estavam na escola, na High School, Fundamental também, a Prime School, e a gente recebia relatório das escolas naquela época. E aquela época era o auge de movimento hippie, do movimento contra a Guerra do Vietnã, e tal, muita maconha, e nós os discutíamos em casa, porque, enfim, Os meninos estavam lá, tínhamos que discutir o que estava acontecendo. A escola dava a probabilidade de porcentagem de crianças que tinham usado droga, e não sei o quê, que tipo de droga. A família tem que discutir.

Bob - Quer dizer, não adianta moralizar a questão, fazer de conta que não existe, e delegar ao Estado a cobrança.

FHC - Não, tem que conversar, tem que discutir. Eu acho que essa senhora tem que assumir a responsabilidade e discutir, não delegar. Tem que dizer, "olha, você é minha filha, olha o que acontece, olha o risco que você corre", para a criança ter mais noção do que vai acontecer.

Maria - E a gente vê que muitos pais veem crianças de 12 e 13 anos bebendo alguma coisa e não se chocam, mas, se ouvirem falar que eles fumaram um baseado, isso vira uma questão horrível na família, dramática...

FHC - Eu acho que devia se chocar do mesmo jeito. Tem que falar, "cuidado, hein? Você já tomou uma dose. Para por aí. Uma tacinha ainda vai, mas se continuar você vai mal". A mesma coisa com o baseado...

Bob - De manhã, à tarde e à noite, haja chocolate!

FHC - Fica inútil, não é? Haja chocolate (risos).

Maria - O senhor falou ainda há pouco falou da questão de seus filhos, que viveram nos EUA nos anos 1970, na época do auge do movimento hippie, que também era contra a guerra, e talvez por isso a maconha tenha sido proibida na época, há uma discussão sobre isso. Agora você tem netos adolescentes também. Eles conversaram com o senhor sobre o assunto, questionaram essa sua nova posição sobre o assunto?

FHC - Eles acharam ótimo (risos). Eu tenho netas, as duas netas, são psicólogas, e uma com psicologia em hospitais, enfim, e elas acompanham, pedem filme para ver e tal. E um dos meus netos, quando estava sendo feito o filme - ele trabalha com desenho industrial -, ele participou e opinou, ele e a irmã dele, que estuda antropologia nos EUA. Eu tenho cinco anos, e a outra também acompanha...todos acompanham, discutem e tal e acham que eu estou certo, que é preciso realmente discutir o assunto. E nenhum deles entrou em droga nenhuma.

Bob - Tem que tirar o véu do tabu.

FHC - Tirar o véu do tabu. Romper o tabu mesmo, não é?

Maria - E por que você acha que existe tanto receio em discutir - e não estou falando de regulamentar, que isso vai levar muito tempo ainda -, mas a simples discussão ou a simples tomada de posição a respeito desse assunto?

FHC - Tudo que diz respeito ao comportamento humano é difícil, então se prefere não entrar no assunto. Sexo também, gênero, direito da mulher...

Bob - Religião.

FHC - Religião. Tudo relativo a comportamento faz as pessoas se fecharem, elas têm medo. E outra coisa, alguém tem sempre que assumir uma posição de risco. Eu sei que a minha posição é de risco, porque as pessoas não gostam de ver novidade. As pessoas gostam de saber o que já sabem, de ver a repetição do que já sabem, pois é mais confortável. Quando você entra numa zona de incerteza, que é o caso, as pessoas não querem, preferem...

Bob - Fazer de conta que os filhos não fumam...

FHC - Ficar na tranquilidade. Ninguém gosta de arriscar, mas é preciso. E não é por acaso que, o Cevi, foi presidente do México, o Gavi, foi da Colômbia, o Clinton, foi dos EUA...

Maria - Jimmy Carter...

FHC - O Jimmy Carter, a Ruth Dreyfuss, a Gro Brundtland, o Kofi Annan, que foi secretário-geral da ONU, que pertence também à Comissão Global de Drogas, porque sabem disso, sabem que não dá para continuar assim. E já estão, vamos colocar assim, mais além do bem e do mal nesse sentido.

Bob - Já não têm que fazer o cálculo político...

FHC - Esse negócio de quantos votos eu vou ter, não sei o quê. Se bem que eu acho, e sempre achei isso também, esse negócio de cálculo é relativo. Se você explicar à população, olhando no olho da pessoa, e ele sentir que você está dizendo aquilo porque está convencido, ele pode até dizer, "meu convencimento é outro", mas não vai te banir por isso.

Bob - Claro, presidente, o senhor, tendo vivido a experiência que viveu em 1985 na disputa para a prefeitura e depois na presidência da República, a última coisa que iria pensar seria enfrentar esse tema como enfrenta hoje...

FHC - Não sei, não. Se eu estivesse na Presidência, eu enfrentaria. Enfrentei tanta coisa na Presidência. Não ficaram me amolando por que eu era neo-liberal, porque eu queria exatamente o que todo mundo faz hoje? (risos)

Maria - Agora, presidente, o senhor acha que os políticos do Brasil hoje são mais conservadores do que a sociedade? Eles refletem os valores da sociedade brasileira ou estão aquém?

FHC - Depende da área da sociedade. Em geral, na média, eles refletem a sociedade, que é mais conservadora. Mas há setores da sociedade que vão mais depressa do que os políticos. As instituições políticas, não só no Brasil, estão defasadas. As mudanças são muito rápidas.

Bob - Estão envelhecendo. Na verdade, o parlamento é de 1200 e envelheceu...

FHC - É. A instituição está...hoje você tem tanto acesso direto à informação e eu acho que as pessoas querem participar como pessoas, cada com uma opinião.

Bob - Os consensos e dissensos se formam muito mais rápido.

FHC - Muito mais rápido, muito mais rápido. Mas as pessoas não vão na onda. Elas querem saber, "e eu, estou de acordo, não estou de acordo?". É uma sociedade individualista? Não é isso. Porque as pessoas que estão aí, na rede, elas estão discutindo um tema que não é individualista, é da sociedade coletiva. Mas elas querem ter uma opinião delas, querem formar opinião. É isso aquele negócio de rede social, tal...

Maria - Interatividade...

Bob - Não só delegar...

FHC - Não só delegar. Claro que sabem também que certas decisões são institucionais. Mas, na hora do debate, claro que tem que ser mais amplo e se alguém toma a decisão no Congresso antes da hora, a sociedade não aceita, não engole.

Bob - Aliás, em qualquer instituição. Nas últimas horas, a questão do CNJ causou uma reação imediata.

FHC - A dificuldade que nós temos - que não é só nossa, é geral no mundo - é como juntar essa capacidade que os instrumentos modernos dão, de as pessoas opinarem, essa velocidade com que a informação flui, com a representação, a instituição. Como é que vai fazer, se é que vai.

Bob - Como aproximar o século XIII do XXI...

FHC - Esse é o nosso desafio. É o desafio da ciência política e da prática política, e não se sabe ainda muito bem...ontem, um rapaz lá do Rio veio falar comigo sobre um programa que eles têm, interessante, de fazer com que as pessoas se interessem pelos problemas da comunidade e passem a se organizar e opinar. Mas não opinar vagamente, é um misto entre a opinião de cada um e de suscitar o debate sobre temas. E vão fazer campanhas, por exemplo, sobre o Maracanã - o que está acontecendo com o Maracanã atualmente? As obras estão sendo feitas lá, como é que é? Qual é o grau de transparência?

Maria - Vai ter uma fiscalização maior, participar mais de perto, acompanhar.

Bob - Qual é o número de desalojados...

FHC - É isso. Vale a pena, não vale a pena? Suscitar o debate. Eu acho isso muito bom.

Maria - Temos um jovem aqui, o Gabriel, de 16 anos, de São Paulo, está ansioso por que quer saber quando tempo vai demorar para se legalizar a droga no Brasil?

FHC - (risos) Legalizar não sei.

Bob - Ele não terá feito 18 anos ainda...

FHC - Olha, essas coisas não vêm assim de repente. Demoram. Mas o fato de nós estarmos discutindo, abre um espaço até para quem está em casa vendo que, veja lá, tem gente que acha que se eu fumar um cigarro não é por isso que eu sou um pária. Então, na prática, como esse é um processo social também, já está começando, não vai demorar tanto tempo assim. O fato de você ter tanta gente interessada hoje, debatendo, contra ou a favor, a menos que esteja achando que eu esteja fazendo uma coisa criminosa, mas está bem, está discutindo o tema. Eu acho que já dá um espaço maior para você ter uma atitude menos fechada.

Maria - Agora, o senhor que assumiu essa postura nova e fez esse filme que todo mundo espera que seja divulgado e tal nos colégios, porque realmente abre uma discussão muito interessante e que a sociedade precisa fazer, qual é o resultado que você espera ter a partir desse filme e com relação às políticas antidrogas no mundo?

FHC - Eu acho que pouco a pouco vamos conseguir mudar. Esse filme está sendo objeto de uma negociação para ter uma projeção mais global, com o Branson, da Virgin. Estamos discutindo isso para ter um pacto maior sobre todo o mundo anglo-saxão, pois as decisões nos EUA são muito importantes para isso. Eu vou aos EUA em dezembro participar de um grande encontro sobre essa questão, e eu noto que, mesmo nos EUA, a coisa está começando a ficar madura, não dá para continuar. Sobretudo, pela dramaticidade da relação com o México e com a América Central. É terrível o que está acontecendo. Aí sim, estão matando gente em grande quantidade...

Bob - É a percepção de que não deu certo.

Maria - Você está trocando a droga do México, que entra ou é produzida por lá, pelas armas que são produzidas nos EUA.

FHC - É o consumo norte-americano. Os americanos não fazem nada para diminuir o consumo, não fazem nada para parar o contrabando de armas...

Bob - O de acetona, de éter e mais insumos...

FHC - ...e fica acusando o México. Obriga o Governo do México a ter essa atitude de guerra, que só está levando a mais tragédia, então começa a haver mais percepção. Eu fui aos EUA, conversei com a secretária de Estado, a Hilary - jantamos eu, o Gavin -, e, bom você sabe, quem está numa posição...mas o marido dela deu um depoimento.

Bob - E ele fumou, mas não tragou.

FHC - Ele fumou, mas não tragou (risos). Eu acho que é meio ridícula a discussão. Eu não sei o que é tragar, mas dá no mesmo fumar, tragar. Mas, enfim, eu vejo que, mesmo nos EUA, começa a haver uma percepção de que a coisa como vai, não vai. Eu mandei, ainda nesta semana, uma carta ao homem responsável pela política antidrogas das Nações Unidas nos EUA, um russo - nós queríamos que fosse um brasileiro, que eu até apoiei, aquele rapaz, o Abramovay, o Pedro, ele é bom. Mas está um russo nesse lugar e os russos são muito fechados, mas mesmo assim eu mandei uma carta a esse russo nesta semana, propondo um diálogo com ele, e, eventualmente, nós vamos ter um seminário na Rússia, que é um lugar bastante difícil para discutir essas questões - nós vamos entrar pelo ângulo da saúde e pelo ângulo da Aids. Enfim, leva tempo, mas eu acho que está se movendo.

Maria - Presidente, foi um prazer conversar com você por todo esse tempo. Muito obrigada pela presença aqui no Terra, pela vinda. Os internautas também participaram muito. Bob, muito obrigada também pela participação na entrevista. E que o senhor siga nessa trajetória e que em pouco tempo a gente consiga fazer uma política mais flexível e que dê mais resultado em relação ao combate às drogas no mundo todo.

FHC - Obrigado vocês.