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ORFEU

RAPIDINHO (Coisa nenhuma)

Que dureza! Já escrevi umas 20 linhas e não consigo começar a coluna. O "delete" varreu cada palavra com sofreguidão. Pensei em sair correndo para ver outro filme, uma porcaria americana qualquer, daqueles a que se arrasa sorrindo, sabendo que, no máximo, alguns leitores vão me chamar de intolerante. Pensei também em construir um texto anódino, técnico, falando das belas imagens, da montagem, do esforço da produção, da cenografia, da atuação de Murilo Benício. Pra quê? Os jornais já fizeram isso, daquela forma paternalista que todo mundo conhece.

Outra solução: falar da trajetória de Carlos Diegues, da sua relação com o Cinema Novo, dos bons filmes que já fez. Elogiar "Chuvas de verão" e "Bye bye, Brasil". Tudo isso pra fugir de uma opinião, de uma simples e sincera sucessão de frases inspiradas pela experiência de ver um filme. Mas por quê tá tão difícil? Por quê não começo com um parágrafo que resuma a história e depois desvende rapidamente se o enredo foi bem sustentado pelo diretor? Por quê não fazer o contrário do que faço toda semana aqui no ZAZ? Basta colocar, acima do que penso, a comodidade de não mexer num vespeiro perigoso. Seria bem mais fácil.

É grande a tentação de marcar outra vez todo esse texto e mandá-lo para o espaço. Esse "rapidinho" já tá bem grande. Mas já adiei ao máximo a tarefa. Eu não disse que "Central do Brasil" era melodramático demais? Não apontei alguns diálogos fracos em "Ação entre amigos"? Então chegou a hora de falar honestamente sobre "Orfeu". É duro, porque é um filme brasileiro, de um consagrado diretor brasileiro, que acaba de estrear em dezenas de salas, com distribuição da Warner e grande campanha publicitária. Eu quero que o renascido cinema brasileiro cresça com saúde, que caminhe com segurança, que conquiste a confiança do público, através de uma produção variada, honesta, criativa, profissional, apaixonada. Mas, falando francamente, "Orfeu" é um desastre. Pior: como é um filme caro e ambicioso, é um grande desastre. O maior dos últimos tempos. Pô! Finalmente saiu. Ô, trabalhinho duro.

AGORA COM MAIS CALMA

"Orfeu" é a antítese perfeita de Festa de família, que comentei na semana passada. É o Anti-Dogma 95. Em vez de usar uma das inúmeras favelas do Rio como cenário, construiu uma novinha em folha. A produção deve ter dezenas de bons motivos para justificar sua opção, enquanto eu tenho apenas uma para criticá-la: não fez a menor diferença. "Orfeu" é o pobre cinema brasileiro posando de poderoso, vestindo fantasia luxuosa e riquíssima, para depois entrar na avenida e fazer um desfile constrangedor, embaraçoso, atravessando o samba e esquecendo a harmonia.

Cacá Diegues não poderia cometer o mesmo erro de "Quilombo", que raspou os cofres da Embrafilme em nome da necessidade de produzir um filme com qualidade suficiente "para exportação". Qualidade que sobra no filme dinamarquês, sujo, feio, barato. "Festa de família" está rodando as salas de todo o mundo, apesar da produção simples, porque tem muito mais qualidade cinematográfica que "Orfeu".

Quando vamos aprender essa lição? Acho que nunca. Por isso, depois de anos defendendo que o cinema brasileiro abrigue todo tipo de produção - grandes, médias e pequenas -, lanço aqui uma campanha: pela limitação dos recursos públicos (originados em renúncia fiscal) no orçamento dos filmes. Esse teto teria que ser discutido democraticamente, é claro. Minha sugestão: 2,5 milhões de reais, que é o suficiente para fazer um filme barato. O Brasil precisa de mais filmes, de mais propostas estéticas, de mais alternativas de produção. As leis Rouanet e do Audiovisual não podem mais financiar desastres desse porte. Precisamos de muitos pequenos desastres, e um dia vamos aprender a nadar.

Mas voltando ao filme, peço licença para ser breve. Talvez no fim dessa semana, respondendo às mensagens dos leitores, eu consiga fazer um comentário de verdade, em vez de ficar dando voltas e voltas sem chegar a lugar algum. Mas preciso dizer pelo menos 3 coisas sobre "Orfeu":

1 - O roteiro é ruim. Se foi mesmo "fiel" à peça, a peça é ruim. Se houve um esforço para adaptar o original para o cinema, o esforço, infelizmente, não foi bem sucedido. Os personagens são inverossímeis, os diálogos são sonolentos, o enredo não surpreende, o final não emociona. Houve boa intenção, é claro. Carlos Diegues segue sua trajetória de forma coerente. Ele mostra, num filme brasileiro, um negro brasileiro como herói; e a favela como cenário importante para discutir o Brasil. Pena que o roteiro não absorva melhor essas idéias. Não há filme que resista a um roteiro que oscila como um bêbado entre o realismo e a fábula, entre o romance e a denúncia social, entre a ideologia de cinema novo e a produção de comercial de cerveja.

2 - A atuação do casal de protagonistas corresponde ao que de pior se faz na televisão brasileira. Tony Garrido está em "Orfeu" pelas mesmas razões que Ricardo Machi está nas novelas. E Patrícia França é um desfile de caras e bocas sem qualquer interiorização dramática. Às vezes isso funciona numa trama realista da TV, mas na transposição de um mito da Grécia antiga, era preferível que ela usasse uma máscara.

3 - Todo o esforço de produção, todos os cuidados com a cenografia, com a beleza plástica, com a competente figuração, em vez de "puxar" o espectador para a história, em vez de tornar os personagens mais verdadeiros, em vez de ajudar o público a torcer pelos mocinhos e secar os bandidos, coloca o filme num círculo auto-referente, egoísta, de um carioquismo que o cinema brasileiro já elevou à enésina potência em "n" filmes que fazem do Rio o umbigo do universo. Hollywood é muito mais generosa com o resto dos Estados Unidos do que o Rio com o resto do Brasil.

Apenas um exemplo: a cena em que Caetano Veloso canta na favela. Tem explicação? Claro que tem. É Caetano Veloso, referência baiano-carioca de inteligência e bom gosto. Não importa que a sua aparição seja quase patética (ele não é personagem; é uma espécie de comentarista musical em cena aberta), que a sua canção seja abafada pelos diálogos depois de alguns segundos, que seja um corpo estranho ao filme. A única coisa que importa em "Orfeu" é a "imagem". Se cinema fosse uma sucessão de belas imagens, o filme teria boas chances no Oscar. Mas cinema é mais do que isso. É claro que provavelmente eu não entendi nada, porque não gosto de samba nem de Carnaval. Pior: fui procurar razão numa obra que pretende simplesmente fazer uma celebração. E, convenhamos, o Rio merece mesmo ser celebrado, porque é bonito demais, mesmo nos trezentos e sessenta e um dias em que não é Carnaval.


Orfeu (Brasil, 1998). De Carlos Diegues

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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

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