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A Corrente do Bem
De
Mimi Leder




 

ALTAS DESCULPAS
Em primeiro lugar, perdoem-me a evidente falta de atualidade desta coluna. A corrente do bem saiu de cartaz há algumas semanas; contudo, é um dos filmes que acabam de ser exibidos no avião em que regresso de Portugal, onde participei do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira. Escrevo, portanto, a uns 7 mil pés de altura, sacudindo levemente e já sobrevoando o Brasil. Na terra de Camões, vi alguns filmes interessantes, mas nenhum deles entrou ainda no circuito, de modo que vou deixá-los para mais tarde e concentrar-me na "velharia" a que acabo de assistir.

RAPIDINHO
Era muito difícil criticar o trabalho de Madre Teresa de Calcutá, mesmo quando viva. Agora que está morta, quem se atreveria a dizer que seus atos não eram "bons"? Numa terra miserável, ela levou algum alívio para pessoas desesperadas, que recebiam dela não a forma fria e tradicional da misericórdia institucionalizada, e sim, conforme o que podíamos perceber nas imagens da TV, um olhar humano, pleno de consolo, um olhar que só pode partir de quem se entrega a uma causa que sabe estar perdida. Muito poucos se atreveriam a criticá-la. Nietzsche, com certeza, o faria, denunciando a compaixão pelos fracos como uma forma de perpetuar as injustiças e purgar a culpa dos cristãos. Mas Nietzsche morreu em 1900, quando Madre Teresa estava nascendo.

AGORA COM MAIS CALMA
Convenhamos: é muito difícil julgar os bem intencionados. Essa é a grande pedra no caminho de uma análise deste novo trabalho de Mimi Leder, mulher como Madre Teresa, cheia de compaixão pelo mundo como Madre Teresa, mas que, em vez de circular nos hospitais e ruas da Índia, está num lugar chamado Hollywood, fazendo filmes. Não tenho forças para tirar essas pedra do meu caminho. Peço licença, então, para subir em cima dela, de modo a olhar para o filme fazendo de conta que ela não está ali. A pedra, é claro, está sob os meus pés, eu sei disso, mas tentarei não olhar para baixo. Não olhem também, nos próximos cinco minutos. O que vemos então?

Um belo punhado de personagens sofredores: um professor solitário, com o corpo coberto de cicatrizes; uma mulher alcoólatra, abandonada pelo marido violento; um garoto de 10 anos, filho desta mulher, rezando para que o pai não volte tão cedo. Temos também um mendigo viciado, uma velha que vive dentro de um carro em Las Vegas e um jornalista atrás de uma história maluca, a tal "Corrente dos Três Favores", muito parecida com essas bobagens que circulam todos os dias pela Internet, prometendo dinheiro fácil ou a salvação de um pobre coitado no outro lado do planeta. Esse jornalista não é exatamente um sofredor (apesar de ter ser carro arrebentado na primeira cena), e não precisamos sentir pena dele, o que é um alívio, mas, infelizmente, ele também é o personagem mais artificial, fraco e desinteressante do filme. Não passa de um truque narrativo para contar a história com uma pretendida grandiloqüência. E, como A corrente do bem começa e termina com ele, é inevitável que a sua artificialidade contamine o todo da obra.

Mimi Leder teria alguma chance se, em vez de, pretensiosamente, propor um painel da boa vontade entre os homens, se concentrasse naquele agudo drama familiar, aproveitando seu elenco talentoso: Kevin Spacey (com um olhar meio bobão, mas ainda convincente), Helen Hunt (meio caricata) e o pequeno Haley Joel Osment (confirmando ser um grande ator). Leder sabe filmar e, nos momentos intimistas da trama, consegue captar emoção e fazer o conflito crescer. Pena que, com seu complexo de Madre Teresa, volte sempre ao plano didático, quase de catecismo, e aí as suas boas intenções, em vez de ajudar aos pobres espectadores, só trazem irritação, como acontecia em Impacto profundo. Vamos agora sair de cima da pedra, já que, como dá pra ver na última frase que escrevi, não foi possível analisar o filme sob um prisma simplesmente formal. Como sempre, o modo de narrar está ligado, por cadeias invisíveis, ao que é narrado. Então, dou um pontapé na pedra e, obviamente, só consigo me ferir e sentir dor no dedão. A pedra estava no meio do caminho e lá vai permanecer por um loooooongo tempo.

Confesso que o destino final do garoto me surpreendeu. Eu esperava um final feliz tradicional, e o roteiro conseguiu uma virada bem interessante (e lógica). Se o filme terminasse por ali, teria se redimido parcialmente; entretanto, Mimi Leder caiu na tentação de sempre: o exagero moralista. O último plano, com todas aquelas velas e o clima de "paz na terra aos homens de boa vontade" é uma outra pedra de várias toneladas caindo no meu caminho. Subo também sobre esta e lanço ao vazio as palavras de Nietzsche:

"Quem narra alguma coisa, logo deixa perceber se narra porque o fato lhe interessa ou porque quer despertar o interesse mediante a narrativa. Neste caso ele exagera, usa superlativos e faz coisas assim. Então ele geralmente não narra tão bem, porque pensa mais em si do que no assunto." (aforisma 343 de "Humano, demasiado humano", Companhia das Letras, 2000)

A Corrente do Bem (EUA, 2000). De Mimi Leder


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Carlos Gerbase
é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para a Terra Networks (A Gente Ainda Nem Começou e Fausto). Em 2000, lançou seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

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