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Ônibus 174 é tese contra a miséria brasileira e o descaso do Estado

Sexta, 06 de dezembro de 2002, 11h40

José Padilha fez do primeiro filme de sua autoria um acontecimento cinematográfico. Em Ônibus 174, o diretor investiga a violência escudado pela tradição emocionada dos filmes-reportagem americanos. Depois de assistir ao documentário, conhecem-se não só a história oculta do rapaz de 22 anos que, em junho de 2000, seqüestrou o ônibus da linha 174 no Rio, mas as razões sociais que o levaram a agir assim. Padilha situa na polícia, no governo e na imprensa a incapacidade de lidar com a miséria brasileira.

Produtor de Os Carvoeiros (2000), pesquisador de filosofia da ciência e ex-operador de banco de investimentos, José Padilha achou (fato raro) um caminho para contextualizar o mal-estar social. A ousadia de José Padilha e de seu co-diretor, Felipe Lacerda, não é formal, mas filosófica. O filme, de narrativa tradicional, parte sem glamour da história do seqüestrador Sandro Nascimento para a investigação ampliada do descaso do Estado com a pobreza.

"Isto é o Rio de Janeiro: um lugar maravilhoso, desperdiçado por uma série de governos estaduais incompetentes", afirma Padilha, de 35 anos, para quem a atividade de documentarista é associada à de um homem de ciência nesta entrevista concedida em São Paulo, cujos trechos reproduzimos.

Você estava no Rio na ocasião do seqüestro?

José Padilha - Sim. Eu fazia ginástica e, em frente às esteiras da academia, havia as televisões. Comecei a acompanhar os fatos pela GloboNews, mas a cobertura não dizia o que estava acontecendo. Ninguém sabia que Sandro Nascimento havia estado na Candelária [centro do Rio, onde sete meninos de rua foram assassinados em 1993]. Ele falava para fora do ônibus, mas havia pouco som direto. Permaneci na academia vendo a transmissão porque minha casa é próxima do local do seqüestro, no Jardim Botânico, e entendi que a rua estava fechada para mim.

Em que momento você decidiu fazer o filme?

Em janeiro de 2001, fui para o Festival Internacional de Cinema de Sundance com Os Carvoeiros. Lá, falava-se do documentário sobre a morte da equipe de tiro de Israel na Olimpíada de Munique, Um Dia em Setembro [de Kevin Macdonald, vencedor do Oscar]. Vi uns trechos e pensei: "Se eles conseguiram fazer esse documentário sem ter a filmagem do seqüestro em si, vou fazer um filme muito interessante sobre o seqüestro do ônibus ao obter o material de arquivo das televisões." Quando voltei dos Estados Unidos, comecei o filme de imediato, com recursos próprios.

Você parece ter partido do ponto de vista do espectador. Ele também não se satisfez com a falta de explicações para aquelas imagens e para o fato em si.

Meu ponto de partida foi o de um documentarista. Antes de fazer um filme, já sei que um documentarista tem uma visão diferente da mídia normal. Não porque um seja melhor ou pior do que um repórter de jornal ou televisão, apenas porque tem tempo. Meu filme tem dois eixos de história. Poderia apenas contar ao longo do tempo o acontecimento policial. Mas optei fazer o filme com outro eixo, o da vida do seqüestrador. Um eixo explica o outro. À medida que entendo como foi a vida daquele seqüestrador, como foi a integração daquele menino de rua com o Estado do Rio, com a polícia, com o Instituto Padre Severino [instituição para menores infratores], com as cadeias, entendo não só quem ele é e por que faz e fala as coisas daquela forma, mas por que existe a violência no Brasil, e por que a polícia não resolve o problema.

Quanto tempo você gastou na pesquisa?

Passamos mais de um ano e meio pesquisando e montando ao mesmo tempo. Eu filmava, transcrevia as entrevistas e lia. Tinha um detetive e um advogado trabalhando para mim, que iam aos cartórios e prisões e tentavam descobrir os documentos oficiais, os processos do Sandro, para que eu localizasse as pessoas que o conheceram. Fiz pessoalmente as entrevistas.

Você não tentou mostrar um cruzamento de vidas naquele ônibus. Não buscou conhecer a trajetória das pessoas seqüestradas.

Eu poderia contar a história de um policial, a história da Geísa [refém morta por Sandro no confronto final]. Eu até comecei a filmar a história dela. Existiu na época um lead de jornal que dizia: "Um menino de rua entrou no ônibus, encontrou a assistente social que cuidava de meninos de rua e a matou." É um lead maravilhoso. Ou melhor, seria um lead maravilhoso se fosse verdadeiro, mas acontece que não era. Eu fui lá onde a Geísa trabalhava e ela não lidava com meninos de rua. Todas as pessoas têm um grande valor, todas as histórias são muito importantes. Por que, então, só peguei a história dele? Porque ela é capaz de gerar lições sobre o Estado brasileiro, coisa que a história da minha vida, da vida da Geísa, de outras pessoas, não faz. Sandro é um menino de rua no limite da miséria, e a história de uma pessoa na condição dele fala sobre como o Estado lida com o problema. Por outro lado, ele descambou para a criminalidade, foi um delinqüente juvenil. A história dele também mostra como o Estado lida com os delinqüentes juvenis. Ao documentar uma pessoa, documento um processo.

Os depoimentos de policiais, parentes, reféns e criminosos são reveladores, e devem ter sido extraídos com dificuldade.

Na hora de conduzir a entrevista, um documentarista sabe o que precisa ter, os pontos que precisa elucidar. Sei que tenho de descobrir que medalhinha é essa que as reféns entregam ao Sandro em determinada parte do seqüestro. Montamos fitas para cada entrevistado e eu lhes fiz perguntas. Entrevistei a Luana [uma das reféns] por seis horas - é tempo suficiente para cobrir todas as possibilidades. Na ilha da edição, você tem de ter a história contada visualmente. Um filme é uma seqüência de imagens num tempo, e como eu não uso narrador...

Deve ter havido também dificuldades em estar autorizado a entrevistar pessoas.

No filme, um policial fala com a voz distorcida e o rosto mascarado. Há um outro que se expõe, André Batista - ele também participou da ação. Enquanto o Anthony Garotinho esteve no governo, eu não consegui falar com ninguém, nem com um bombeiro. Quando ele ainda era governador do Rio, eu fiz a entrevista com o policial mascarado. Havia uma enorme censura da cúpula de segurança sobre o que era o caso do ônibus 174. A polícia do Rio não havia feito até então um estudo de caso sobre o ônibus 174. Toda a polícia do Brasil fez esse estudo, menos a do Rio - e até hoje. A partir da entrada de Benedita da Silva do governo, comecei a receber as autorizações. O oficial André Batista foi autorizado pela cúpula de segurança do Estado a falar. Rodrigo Pimentel, capitão expulso da polícia, fala porque foi exonerado depois de ter dado uns tiros de sniper no Fantástico, mostrando o que deveria ter sido feito naquele caso e não foi.

Foi difícil selecionar as imagens de arquivo das televisões?

A Bandeirantes tinha 40 minutos de fitas gravadas; a Record, quatro horas; e a Globo, 20 horas, porque contava com quatro câmeras para um evento que durou quatro horas. A primeira coisa que fiz foi falar com o pessoal da Globo, e eles me deixaram ver tudo. Fiquei duas semanas vendo lá todas as fitas, em detalhe. Comecei a entender o que estava acontecendo no ônibus. Percebi quem eram os reféns que tiveram mais interação com o Sandro, que optei entrevistar. Depois disso, a Globo me deixou copiar as imagens, a Bandeirantes também, e a Record. Comprei 50 minutos com toda a história do ônibus (os direitos de reprodução das imagens são caros, mais caros, muitas vezes, que as próprias filmagens). Trabalhei com o Felipe Lacerda, um montador fantástico, e co-roteirista do filme. Enquanto ele fazia a cronologia do ônibus, editando na ordem do tempo o material das câmeras de tevê, eu ia, com o detetive e o advogado, fazendo um mapa da vida do Sandro, obtendo os materiais que ilustravam aquela vida. Quando tinha os dois mapas, fomos à ilha de edição e montamos o material juntos, em três ou quatro meses.

O resultado final lhe satisfez?

Tenho certeza de ter feito um filme completamente isomórfico com a realidade? Não tenho. Nenhum cientista tem certeza se a sua teoria é verdadeira. Ela é verdadeira até prova em contrário. Pretendo enunciar fatos, e não vou falar algo que eu julgue não estar de acordo com eles. Nunca até então alguém tinha falado com a família do Sandro. Nenhuma televisão. Ninguém. A gente falou pela primeira vez. Achei a família dele numa linha de documento no meio daquelas duzentas páginas.

Você tem um depoimento-chave no filme, o do cientista social Luis Eduardo Soares, que comenta a invisibilidade social de pessoas como o Sandro.

Os documentários não têm roteiros. A tarefa do diretor é construir um caminho a partir do que está sendo dito. Depois que eu entrevistei o Luis Eduardo, como ex-secretário de Segurança, eu entendi que tinha de filmar meninos de rua, crianças jogando bola pra cima. Eu já tinha percebido que existiam dois comportamentos diferentes do Sandro durante o seqüestro. Primeiro ele não queria ser filmado, depois dizia: "Pode me filmar legal, Brasil. Eu estava na Candelária." Houve um turning point do personagem principal do filme, o Sandro. Quem me explica isso? No filme, o Luis Eduardo Soares [que situa a necessidade de um marginalizado social ser notado pelas instituições].

Você mostra, por depoimentos de pessoas próximas a Sandro e por declarações feitas às câmeras de televisão durante o seqüestro, que ele sempre almejou essa visibilidade. Mais ainda, ele se julgava dono de um talento teatral, queria ser ator.

O Sandro foi quase um diretor de teatro dentro de um ônibus, dizendo aos reféns: "Você grita agora, fala isso, faz aquilo!" Ele representou uma tragédia quase grega, encenada no mundo real e que fala sobre a sociedade inteira. O Sandro é o principal ator e diretor da peça encenada ali. Ele e a polícia, a imprensa, as pessoas em volta dele.

Você não se viu tentado a entrevistar um psicólogo para interpretar as atitudes do protagonista? O Sandro viu a mãe ser degolada quando tinha 6 anos.

Não usei psicólogos porque um psicólogo parte de uma teoria psicológica, seja freudiana ou lacaniana, e eu não poderia determinar qual estaria certa. Mas os determinantes da psicologia dele não são psicanalíticos, são institucionais. Não quero saber que relação ele tinha com a mãe. O que faz o Estado? Joga essa criança no Padre Severino, enfia um cacete nela. Os policiais matam seus amigos. Essa criança não vai gostar de policial. Não vai se entregar, porque não vai querer voltar para aquela cadeia. O que gera violência é colocar uma criança que bateu carteira ao lado do traficante assassino. Não é o traficante que organiza o Padre Severino. Quem organiza o Padre Severino é o governador.

A grande contribuição de seu filme talvez tenha sido essa, a de montar esse trajeto, que poucos têm coragem de traçar.

Dá trabalho fazer um filme sobre violência, é difícil levantar dinheiro. Em Ônibus 174, gastamos R$ 800 mil. Só pudemos levar este filme adiante - eu e meu sócio, Marcos Prado - porque fazemos documentários para a National Geographic bem pagos em dólar.

Mais do que os recursos, você talvez tivesse necessidade de dizer as coisas que disse no filme.

A história do filme é extraordinária, bastou contá-la. Depois do seqüestro, ninguém olhou para o Sandro, tido por monstro, por louco drogado. Acontece assim: as pessoas telefonam umas para as outras e não entendem como funciona um telefone. Esta é uma atitude do cotidiano. Mas se você vai escrever uma tese científica sobre o telefone tem de fazer de forma diferente. A violência é assim no Brasil, mas por quê? O mundo é complicado, a natureza é complicada. Quase sempre, se você entendeu a coisa rapidinho, você não a entendeu.

InvestNews – Gazeta Mercantil

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